Filme: "A Paixão Segundo G.H."
Quem já foi ver "A Paixão segundo G.H."? Baseado no livro do mesmo nome de Clarice Lispector, está dando o que falar. Ouvi que as pessoas estavam saindo no meio do filme pois "não acontecia nada". 😅 Num relato, parece que 20 pessoas saíram na metade.
Coisas que podemos agradecer a Clarice: pela coragem de relatar esse mundo "onde não acontece nada". Quer dizer, onde PARECE que não acontece nada... Sim, pois o mundo lá fora ainda não sabe do mundo lá dentro.
Ainda lembro bem quando estudei um conto da Clarice (“O Búfalo”) no laboratório de criação e expressão literária do Nilton Resende (SESC) ele explicou: "Clarice conta a interioridade, e não a exterioridade". E eu "ahhhhhh, é isso, é isso". E ela faz primorosamente, conseguindo ignorar o mundo lá fora tão perfeitamente quanto o mundo lá fora ignora este mundo de dentro. Por isso, Clarice, a meu ver, é uma vingadora. Ela se "vinga" do mundo não admitindo-o, de certa forma, temporariamente. Não permitindo que ele entre. Não mais do que o mínimo. Isso não quer dizer que ela não capta o mundo lá fora. Muito antes pelo contrário. Ela está nos dois e escolhe um, escolher por preferência.
E as pessoas acostumadas com o mundo "masculino", o mundo da ação, o mundo de Marte, da concretude, saem perplexas do cinema, no meio do filme, sem entender o que acontece (porque acham que nada acontece). Sem compreender que não entendem o que acontece no filme porque também não entendem o que acontece dentro delas mesmas.
Ficar até o final seria como seguir a Mestra; mas talvez não passe pela cabeça das pessoas isso...
Pois o filme é uma terapia. Não, o filme é uma verdadeira ayahuasca: visual e interna. Primeiro, ver as frases de Clarice pipocando, uma após a outra, no oco da sala de projeção... que maravilha. A literatura como concretude também, mostrando outra dimensão. Como realidade. É pontada atrás de pontada e nem dá tempo de você se recuperar vem outro insight maravilhoso dessa buscadora incrível que foi Clarice. Buscava-se profundamente.
Um detalhe, porém: não é um filme para todo mundo. Possibilidade de surto é grande, visses. Se não estiver muito bem, tomando remédio, depressivo/a, ou muito vulnerável ou não tiver ferramentas para lidar com... crises... Porque é o que Clarice conseguiu nesse texto: a seu modo, único, ela descreve uma noite escura da alma.
A minha humilde leitura pessoal (e que não deve ser a única, claro), passando pelos aprendizados que tive com a Gestalt Viva, com a meditação, com minhas buscas, experimentos, rituais, etc: pra mim, este texto de Clarice é o desesperador, mas potencialmente curativo, encontro da mente humana com o animal interno. O susto de ser também animal: sujo, imundo, instintivo, e considerado "nada" (como o mundo considera o animal, algo descartável, não senciente, inútil).
"Isso é loucura, isso é loucura", ela grita contra a parede numa das melhores cenas, mas o rosto tomado de puro prazer, vira-se na direção da barata, a direção que o corpo teima em ir.
A mente humana (que se acha, né! perfeita, resolvedora de tudo, entendedora de tudo) X o animal. Veja como nas falas dela, o desespero não vem do animal, mas da mente humana se dando conta desse animal interno e vendo-o como o diabo, o incontrolável (ah, o grande medo da mente: a falta de poder, o não poder controlar!)
E às vezes na mesma frase, a protagonista do filme fala de uma alegria, de um prazer sem tamanho, e de uma liberdade e de um desejo enorme (de comer a barata — a luta toda é essa... "quero comer, mas não devo").
Me dei conta durante o filme (e não no livro) de que a protagonista mata a barata e depois quer comer (como faz o bicho: come o que consegue matar; se alimenta daquilo). Mas para a mente racional (não falo aqui da Mente Profunda, que envolve o inconsciente também, que é sábio) isso é enlouquecedor. Por isso, a confusão da protagonista: nojo e vitalidade vindo do mesmo lugar. Como assim?
Sim, pois a mente racional sente nojo de quase tudo o que é vital, que produz vida (gosmas, órgãos internos, sangue, mucosas, amebas, minhocas, a lista é grande de coisas hiper-vitais das quais a mente tem nojo). Pois a mente tem medo da VIDA, da vida inteira, completa, plena, da vida real que contém a morte também.
A meu ver, Clarice (via protagonista) passa por esse despertar, quando a mente percebe que há um réptil interno — aqui representado pela barata — algo que se arrasta no chão — e tinha que ser algo pior do que uma cobra, mais nojenta, mais totalmente desprezível, para poder fazer a impressão certa — pois a mente vê esse "lado animal" como sujo, imundo, horrível e terrível.
E esse réptil veio antes da mente e por isso ela o teme tanto. Pois é mais arcaico (sábio) que ela, é antes dela. Ele a sabe, mas ela não o sabe. No cerne disso, está a história do medo que o humano desenvolveu da Natureza quando primeiro surgiu a mente racional no humano. O medo de tudo o que é "incontrolável" e a partir do surgimento dessa mente (uns 6 mil anos atrás), ela própria, a mente, fez do seu intuito principal tentar controlar tudo o que não entendia, tudo do que tinha medo. Daí vem a ojeriza por tudo o que é feminino (emocional e instintivo): que ficou considerado sujo, escuro, loucura, desprezível, demoníaco (ela repete essa palavra no filme, inferno, demoníaco, o diabo...). Mas essa é a visão A PARTIR da mente, e não necessariamente a visão real das coisas. Se fosse assim, a natureza seria toda demoníaca e nós saberíamos disso, pois os indígenas já nos teriam dito. E eles são os primeiros a dizer que não é assim, que é um engano. Que a "cosmologia" da mente é um grande engano. É uma cosmologia doentia, de fato, pois arranca de si uma parte crucial: o bicho.
Aqui é fácil ver como as religiões são invenções da mente com medo de si mesma, da sua parte animalesca. Que se bem integrada, serviria para trazer vitalidade pra gente, mas na sombra, vira "o diabo". Algo fora de nós e contra nós e que deve ser combatido. E fazemos isso no território do nosso próprio corpo, diariamente, não nos permitindo uma infinitude de coisas que são próprias do instinto, e do natural, querer. E lutamos com isso dia e noite, como G.H. no livro e depois no filme.
No fundo, é o encontro com o conceito do feminino cru. Que não teria que ser ruim, mas é por causa da maneira que a mente vê esse feminino. O vê como uma barata. E quem, em mente sã, quereria comer uma barata, sim?
Curioso é que a barata é o animal que é dito que se acabar tudo na terra, todos os animais, ela resiste por 6 semanas sem alimento nenhum. Ou seja, um "ET" praticamente. Que bicho é esse, sim? Não o reconhecemos em nós.
Digo que o filme é uma ayahuasca porque um dos lugares mais importantes que a ayahuasca providencia é esse encontro com o animal interno — ao "destampar" o que está tampado pelo efeito "civilizatório", o hemisfério direito do cérebro, a ayahuasca abre a porta para que saia tudo o que a mente racional, hemisfério esquerdo, não se sente nem orgulhosa nem à vontade de ser —, o animal interno não é um ursinho de pelúcia branca como a mente “Disneyworld” gostaria. Na verdade, a mente vive uma ilusão: a ilusão do que não é. Inventa a si própria uma história, de que é boa, de que é humana, de que isso e aquilo. E quem será que está fazendo todo o mal no mundo se a mente é tão boa não é mesmo? Quem será?
"O caminho para o inferno está ladrilhado de boas intenções", diz o ditado. As histórias que o humano se conta de como ele é especial, e tal. Clarice (ou G.H.) despenca desse lugar. E vê.
Nos faz o favor de ver.
Abaixo, coloco algumas frases do livro, e faço correlações sobre como a mente vê, pela primeira vez, o animal, e achando-o horrível, e querendo a libertação ao mesmo tempo, pois um lado mais profundo desta mesma mente sabe que ele é verdade. E é por isso que se diz que o corpo não mente jamais, e a mente sim, pois o corpo... é o território do instinto. É a barata quem manda. E ela não mente sobre o que é.
“Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.”
“É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.”
“Terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.”
“Sou cada pedaço infernal de mim.”
“(...) quanto a mim mesma, sempre conservei uma aspa à esquerda e outra à direita de mim.” (Ou seja, não sou real, de verdade. O animal não tem aspas, É. É a mente que é uma metáfora, uma analogia, um conceito. O animal é concretude. E não é louco que Clarice, no fundo, fala de coisas muito mais concretas, muito mais reais, em não falando de exterioridades, do concreto? Isso é a genialidade de Clarice.)
E aqui ela confirma:
“Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar – a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.” (A mão desconhecida, a meu ver, é a mão do animal, do real, dessa verdade escondida sobre si mesma, de que 'não sou só mente', de que há outras coisas mais que me dirigem: instintivas, inconscientes, desejosas de que? Em perdendo um “amor”, uma paixão — pois a história se coloca, superficialmente, como uma mulher que perdeu um amor, um amante, e através da perda dessa atividade instintiva, dessa localidade instintiva, dessa paixão, ela depara-se com outra, mas outra “paixão” que se revela muito mais real, muito mais profunda, a verdadeira fonte da paixão no humano: a movimentação instintiva em si mesma, o lugar que produz a paixão ele mesmo. É esse lugar que oferece a mão a essa mulher. No fundo, a mulher se apaixona pela barata, por isso diz “isso é loucura, isso é loucura” ao mesmo tempo em que ri, em que não resiste a essa loucura. Em que quer, porque quer estar viva, quer viver, e não há viver sem viver o instinto. A paixão vem daí, do corpo. Está presente na via crucis de Jesus, está presente na via crucis de G.H. e sua barata.)
“O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.” (A paixão sendo aquilo vindo do animal em nós, dos chacras baixas, da vitalidade e do instinto no corpo.)
“Numa experiência pela qual peço perdão a mim mesma, eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo.” (Entrando no mundo de verdade, o mundo do instinto, negado pela mente. Mas isso se dá primeiro entrando no "mundo dela", no mundo interno, na introspecção — uma mulher sozinha em seu apartamento depois que a empregada vai embora, a partir do que a mulher tem acesso ao 'fundo da casa', ao fundo de si, ao que está 'por baixo', para o qual ela se direciona com uma chave na mão. A chave para uma outra dimensão que parece aterradora, mas é uma dimensão mais viva de si mesma.)
“Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?” (Quem tem medo dessa “desorganização profunda” é a mente, pois nada está desorganizado, o mundo é o que é, está onde está, a barata é a barata, mas e a mulher, quem pensa que é? Ou seja, quem a mente pensa que é? A mente vive o amor/a paixão como se fosse algo apenas “sagrado”, elevado, mas é um tudo. É “desorganização” e não é, é loucura e não é, é descontrole e não é.)
“E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.” (Aqui o cerne do medo, do instinto, “amparada” na ilusão de que o pensamento salva — é do que a mente a tenta convencer, na falta de controle sobre tudo, sobre o mundo, sobre o que não entende e lhe amedronta.)
Finalmente, observo várias vozes no filme: a da mente da mulher, que diz que isso tudo é loucura, é a voz do racional, do masculino, do pensamento; a do animal da mulher, que quer acordar, quer ser visto para que a mulher seja inteira, é a voz do corpo, do desejo inconsciente, dos sentidos e do sensorial; e a voz da barata, que aqui é um ser integrado externo que serve de mestre, que foi morto mas não morre, pelo contrário, fica produzindo vida — num animismo xamânico, seria uma sessão de cura através da figura de um animal-totem. Como num sonho ou... numa boa borracheira ayahuasqueira.
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