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todotexto · 3 years
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UM SENHOR MUITO VELHO COM UMAS ASAS ENORMES - GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Ao terceiro dia de chuva haviam matado tantos caranguejos dentro da casaque Pelayo teve que atravessar seu pátio alagado para atirá-los ao mar, pois o menino recém-nascido passara a noite com febre e se pensava que era por causa da peste. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma só coisa cinza, e as areias da praia, que em março fulguravam como poeira de luz, converteram-se num caldo de lodo e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio-dia, quando Pelayo voltava a casa depois de haver jogado os caranguejos, que lhe deu trabalho ver o que se mexia e se queixava no fundo do pátio. Teve quese aproximar muito para descobrir que era um velho, que estava caído de boca para baixo no lodaçal, e que apesar de seus grandes esforços não podia levantar-se, porque o impediam suas enormes asas.
Assustado com aquele pesadelo, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava pondo compressas no menino doente, e a levou até o fundo do pátio. Os dois observaram o corpo caído com um calado estupor. Estava vestido como um trapeiro. Restavam-lhe apenas uns fiapos descorados na cabeça pelada e muito poucos dentes na boca, e sua lastimável condição de bisavô ensopado o havia desprovido de toda grandeza. Suas asas de grande galináceo, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda se refizeram logo do assombro e acabaram por achá-lo familiar. Então se atreveram a falar-lhe, e ele lhes respondeu em um dialeto incompreensível mas com uma boa voz de marinheiro. Foi assim que desprezaram o inconveniente das asas, e concluíram com muito bom juízo que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Apesar disso, chamaram para vê-lo a vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela bastou um só olhar para tirá-los do erro.
— É um anjo — disse-lhes. — Não tenho dúvida de que vinha buscar o menino, mas o coitado está tão velho que a chuva o derrubou.
No dia seguinte todo mundo sabia que em casa de Pelayo tinham aprisionado um anjo de carne e osso. Contra o julgamento da sábia vizinha, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá-lo a pauladas. Pelayo o esteve vigiando toda a tarde da cozinha, armado com seu garrote de meirinho, e antes dedeitar-se arrastou-o do lodaçal e o encerrou com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia-noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam matando caranguejos. Pouco depois o menino acordou sem febre ecom vontade de comer. Então se sentiram magnânimos e decidiram pôr o anjo em uma balsa com água potável e provisões para três dias, e abandoná-lo à sua sorte em alto-mar. Mas quando saíram ao pátio às primeiras luzes da manhã, encontraram toda a vizinhança diante do galinheiro, brincando com o anjo sem a menor devoção e atirando-lhe coisas para comer pelos buracos dos alambrados, como se não fosse uma criatura sobrenatural mas um animal de circo.
O Padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pelo exagero da notícia. A esta hora já haviam acudido curiosos menos frívolos que os do amanhecer, e haviam feito todo o tipo de conjeturas sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado prefeito do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na terra uma estirpe de homens alados e sábios, que tomassem conta do universo. Mas o Padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido forte lenhador. Junto aos alambrados, repassou num instante seu catecismo, e mesmo assim pediu que lhe abrissem a porta para examinar de perto aquele varão lastimável que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas distraídas. Estava atirado a um canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e os restos do café que lhe atiraram os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, apenas levantou seus olhos de antiquário e murmurou algo em seu dialeto quando o Padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu bom-dia em latim. O pároco teve a primeira suspeita de sua impostura ao comprovar que não entendia a língua de Deus nem sabia saudar aos seus ministros. Logo observou que visto de perto ficava muito humano: tinha um insuportável cheiro de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada de sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro, e comum rápido sermão preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou-lhes que o demônio tinha o mau costume de recorrer a artifícios de carnaval para confundir os incautos. Argumentou que se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos podiam sê-lo para reconhecer os anjos. Entretanto, prometeu escrever uma carta a seu bispo, para que este escrevesse outra a seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de modo que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos.
Sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou-se com tanta rapidez, que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço demercado, e tiveram que usar a tropa com baioneta para dispersar o tumulto que já estava a ponto de derrubar a casa. Elisenda, com a coluna torcida de tanto torcer lixo de feira, teve então a boa idéia de murar o pátio e cobrar cinco centavos pela entrada para ver o anjo.
Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com uma crobata voador, que passou zumbindo várias vezes por cima da multidão, e ninguém lhe fez caso, porque suas asas não eram de anjo mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os enfermos mais desgraçados do Caribe: uma pobre mulher que desde menina estava contando as batidas do seu coração e já não lhe bastavam os números, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que fizera acordado, e muitos outros de menor gravidade. Nomeio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana empanturravam de dinheiro os quartos, e apesar disso a fila de peregrinos que esperava vez para entrar chegava ao outro lado do horizonte.
O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento.Gastava o tempo em buscar cômodo no ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno dos lampiões e das velas de promessa que encostavam nos alambrados.No princípio, trataram de que comesse cristais de cânfora , que, de acordo com a sabedoria da sábia vizinha, era o alimento específico dos anjos. Mas ele os desprezava, como desprezou sem provar os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por anjo ou por velho que acabou comendo nada mais que papinhas de berinjela. Sua única virtude sobrenatural parecia ser apaciência. Principalmente nos primeiros tempos, quando as galinhas o bicavam em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas, e os entrevados arrancavam-lhe penas para tocar com elas seus defeitos, e até os mais piedosos atiravam-lhe pedras, forçando a que se levantasse para vê-lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram alterá-lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque estava há tantas horas imóvel que o acreditaram morto. Acordou sobressaltado dizendo disparates em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e deu um par de asadas que provocaram um redemoinho de esterco de galinheiro e poeira suja, e um temporal de pânico que não parecia deste mundo. Embora muitos acreditassem que sua reação não fora de raiva e sim de dor, desde aí trataram de não molestá-lo, porque a maioria entendeu que sua passividade não era a de um herói no uso de boa aposentadoria mas a de um cataclismo em repouso.
O Padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto esperava um julgamento final sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma perdera a noção da urgência. Gastavam o tempo em averiguar se o réu convicto tinha umbigo, se seu dialeto tinha algo que ver como aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta de um alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de prudência teriam ido e vindo até o fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto fim às atribulações do pároco.
Aconteceu que por esses dias, entre muitas outras atrações das feiras errantes do Caribe, levaram ao povoado o triste espetáculo da mulher que se convertera em aranha por desobedecer a seus pais. A entrada para vê-la não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas até permitiam fazer-lhe quaisquer perguntas sobre sua absurda condição, e examiná-la pelo direito e pelo avesso, de modo que ninguém pusesse em dúvida a verdade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. O mais triste, entretanto, não era sua figura absurda, mas a sincera aflição com que contava os pormenores de sua desgraça; ainda menina fugira da casa dos pais para ir a um baile, e quando voltava pelo bosque depois de haver dançado sem licença toda a noite, um trovão pavoroso abriu o céu em duas partes,e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. Seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caridosas quisessem pôr-lhe na boca. Semelhante espetáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível escarmento, tinha que derrotar mesmo sem querer o de um anjo altivo que mal se dignava a olhar os mortais. Além disso, os escassos milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a visão mas lhe nasceram três dentes novos, e o do paralítico que não pôde andar mas esteve a ponto de ganhar na loteria, e o do leproso em quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam brincadeiras, já haviam abalado a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou por aniquilá-la. Foi assim que o Padre Gonzaga se curou para sempre da insônia, e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos caminhavam pelos quartos.
Os donos da casa não tiveram nada a lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com sacadas e jardins, com escadas bem altas para que os caranguejos do inverno não entrassem, e com barras de ferro nas janelas para evitar que entrassem os anjos. Pelayo além disso instalou uma criação de coelhos muito perto do povoado e renunciou para sempre a seu mau emprego de meirinho, e Elisenda comprou umas sandálias acetinadas de saltos altos e muitos vestidos de seda furta-cor, dos que usavam as senhoras mais invejadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi o único que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e queimaram gotas demirra no seu interior, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de lixeira que já andava como um fantasma por todas as partes e estava tornando velha a casa nova. A princípio, quando o menino aprendeu a andar, cuidaram para que não ficasse muito perto do galinheiro. Mas logo foram esquecendo o medo e acostumando-se ao mau cheiro; antes que o menino mudasse os dentes, já fora brincar dentro do galinheiro, cujos alambrados podres caíam aos pedaços. O anjo não foi menos displicente com ele que com o resto dos mortais, mas suportava as maldades mais engenhosas com uma mansidão de cão sem ilusões. Ambos contraíram catapora ao mesmo tempo. O médico que atendeu ao menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo, e encontrou nele tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, entretanto, foi a lógica de suas asas.Ficavam tão naturais naquele organismo completamente humano, que não se podia entender por que não as tinham também os outros homens.
Quando o menino foi à escola, fazia muito tempo que o sol e a chuva haviam destruído o galinheiro. O anjo andava se arrastando para cá e para lá como um moribundo sem dono. Tiravam-no a vassouradas de um dormitório e um momento depois o encontravam na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo, que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava fora dos eixos que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, seus olhos de antiquário tornaram-se tão turvos que andava tropeçando nas colunas, e já não lhe restavam senão os canudos pelados das últimas penas. Pelayo jogou sobre ele uma manta e lhe fez a caridade de deixá-lo dormir no alpendre, e só então perceberam que passara a noite com febre, delirando em engrolados de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes que se assustaram, porque pensavam que ia morrer, e nem sequer a sábia vizinha pudera dizer-lhes o que se fazia com os anjos mortos.
Entretanto, não só sobreviveu a seu pior inverno, como pareceu melhor com os primeiros sóis. Ficou imóvel muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de dezembro começaram a nascer-lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de grande pássaro velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tomava muito cuidado para que ninguém notasse, e para que ninguém ouvisse as canções de marinheiro que às vezes cantava sob as estrelas. Uma manhã, Elisenda estava cortando fatias de cebola para o almoço, quando um vento que parecia de alto-mar entrou pela cozinha. Foi então à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas de vôo. Eram tão torpes, que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve a ponto de destruir o alpendre com aquelas asadas indignas que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de descanso, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando-se de qualquer jeito com um precário esvoaçar de abutre senil. Continuou vendo-o até acabar de cortar a cebola, e até quando já não era possível que o pudesse ver, porque então não era mais um estorvo em sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.
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todotexto · 3 years
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A LUZ É COMO A ÁGUA - GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos. - De acordo - disse o pai -, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena. Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam. - Não - disseram em coro. - Precisamos dele agora e aqui. - Para começar - disse a mãe -, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro. Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Indias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação. - O barco está na garagem - revelou o pai na hora do almoço. - O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar. No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada. - Parabéns - disse o pai. - E agora? - Agora, nada - disseram os meninos. - A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto. Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa. Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes. - A luz é como a água - respondi. - A gente abre a torneira e sai. E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido. - Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada - disse o pai. - Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho. - E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? - perguntou Joel. - Não - disse a mãe, assustada. - Chega. O pai reprovou sua intransigência. - É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever - disse ela -, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor. No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão. Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe. O pai, a sós com a mulher, estava radiante. - É uma prova de maturidade - disse. - Deus te ouça - respondeu a mãe. Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama. Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia noite proibido para menores. No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.
Dezembro de 1978.
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todotexto · 4 years
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O ÚLTIMO POEMA - MANUEL BANDEIRA
Assim eu quereria meu último poema Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
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todotexto · 4 years
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A ÚLTIMA CRÔNICA - FERNANDO SABINO 
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você…”
Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.”
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todotexto · 4 years
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Penélope - Dalton Trevisan
Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.
Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.
Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.
Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.
Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.
— Que vai fazer?
— Queimar. 
Não, ele acode. Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal.
 A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.
— Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas. 
O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.
Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:
— Não vai ler? 
Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia. 
— Já sei o que diz. 
— Por que não queima? 
É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha. 
Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora. 
Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses? 
No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras... Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou. 
Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão — no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos. 
Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha. 
Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa. 
Afinal compra um revólver. 
— Oh, meu Deus... Para quê? — espanta-se a companheira. 
Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha. 
Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher. 
De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia? 
Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo. 
Havia um primo no passado... Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma. 
Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la. 
No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa. 
Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia? 
Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca. 
Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto. 
Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora. 
Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa. 
Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua. 
Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova. 
Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta... 
Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave. Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.
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todotexto · 4 years
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Os cantores inúteis - Carlos Drummond de Andrade
Um pássaro flautista no quintal caçoa de meu verso modernista. Afinal fez-nos ambos o universo aprendizes ao sol ou à garoa.
A canção absoluta não se escreve, à falta de instrumentos não terrestres. Aos mestres indagando, mal se escuta pingar, de leve, a gota de silêncio.
Eu, pretensioso, e tu, pássaro crítico, vence o mítico amor nossa vaidade: Os amantes que passam, distraídos
e surdos a tais cantos discordantes, a melodia interna é que os governa. Tudo mais, em verdade, são ruídos.
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todotexto · 4 years
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Regras de citação
Desenvolvidas pelo LABELEA - Laboratório de Ensino de Leitura e Escrita Acadêmica (UNIOESTE), no ano de 2018.
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todotexto · 4 years
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Dicas de Escrita Acadêmica
Desenvolvidas pelo LABELEA - Laboratório de Ensino de Leitura e Escrita Acadêmica (UNIOESTE), no ano de 2018.
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todotexto · 5 years
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Teoria do Medalhão - Machado de Assis
- Estás com sono? 
- Não, senhor. 
- Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são? 
- Onze. 
- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros... 
- Papai... 
- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante. 
- Sim, senhor. 
- Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade. 
- Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá? 
- Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos... 
- É verdade, por que quarenta e cinco anos? 
- Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio. 
- Entendo. 
- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida. 
- Mas quem lhe diz que eu... 
- Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto. 
- Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível. 
- Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente. 
- Como assim, se também é um exercício corporal? 
- Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade. 
- Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo? 
- Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses - suponhamos dois anos, - reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... - Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando... 
- Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol. 
- Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos. 
- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: - ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas; no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira esperta e afreguesada, - que, segundo um poeta clássico, Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico. 
- Upa! que a profissão é difícil! 
- E ainda não chegamos ao cabo. 
- Vamos a ele. 
- Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste? 
- Percebi. 
- Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a "alavanca do progresso" e o "suor do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria. No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente. 
- Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil. 
- Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário. 
- E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida? 
- Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade. 
- Nem política? 
- Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico. 
- Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna? 
- Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: - ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade. 
- Farei o que puder. Nenhuma imaginação? 
- Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo. 
- Nenhuma filosofia? 
- Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. "Filosofia da história", por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc. 
- Também ao riso? 
- Como ao riso? 
- Ficar sério, muito sério... 
- Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, - e este ponto é melindroso... 
- Diga... 
- Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto? 
- Meia-noite.
- Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.
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todotexto · 5 years
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todotexto · 5 years
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todotexto · 5 years
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todotexto · 5 years
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Em código - Fernando Sabino
Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu irmão:
- Recebi de Belo Horizonte um recado dele para o senhor. É uma mensagem meio esquisita, com vários itens, convém tomar nota: o senhor tem um lápis aí?
- Tenho. Pode começar.
- Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.
- Precisa de quê?
- De uma nora.
- Que história é essa?
- Eu estou dizendo ao senhor que é meio esquisito. Posso continuar?
- Continue.
- Segundo: pobre vive de teimoso. Terceiro: não chora, morena, que eu volto.
- Isso é alguma brincadeira?
- Não é não, estou repetindo o que ele escreveu. Tem mais. Quarto: sou amarelo, mas não opilado. Tomou nota?
- Mas não opilado - repeti, tomando nota.
- Que diabo ele pretende com isso?
- Não sei não, senhor. Mandou transmitir o recado, estou transmitindo.
- Mas você há de concordar comigo que é um recado meio esquisito.
- Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais. Quinto: não sou colgate, mas ando na boca de muita gente. Sexto: poeira é a minha penicilina. Sétimo: carona, só de saia. Oitavo...
- Chega! - protestei, estupefato. - Não vou ficar aqui tomando nota disso, feito idiota.
- Deve ser carta em código, ou coisa parecida - e ele vacilou: - Estou dizendo ao senhor que também não entendi, mas enfim... Posso continuar?
- Continua. Falta muito?
- Não, está acabando: são doze. Oitavo: vou, mas volto. Nono: chega à janela, morena. Décimo: quem fala de mim tem mágoa. Décimo primeiro: não sou pipoca, mas também dou meus pulinhos.
- Não tem dúvida, ficou maluco.
- Maluco, não digo, mas como o senhor mesmo disse, a gente até fica com ar meio idiota... Está acabando, só falta um. Décimo segundo: Deus, eu e o Rocha.
- Que Rocha?
- Não sei: é capaz de ser a assinatura.
- Meu irmão não se chama Rocha, essa é boa!
- É, mas foi ele que mandou, isso foi.
Desliguei atônito, fui até refrescar o rosto, para poder pensar melhor. Só então me lembrei: haviam-me encomendado uma crônica sobre essas frases que os motoristas costumam pintar à frente dos caminhões. Meu irmão, que é engenheiro e viaja pelo interior, prometera ajudar-me, recolhendo farto e variado material. E ele viajou, o tempo passou, acabei esquecendo completamente o trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera. Agora o material ali estava, era só fazer a crônica. Deus, eu e o Rocha! Tudo explicado: Rocha era o motorista, Deus era Deus mesmo e eu, o caminhão.
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todotexto · 5 years
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Clara e careca - JK
Era uma vez uma menina que amava a cor branca. Seu nome era Clara e todas suas roupas exibiam sua delicadeza e cuidado admiráveis, pois estavam sempre bem branquinhas. Além disso, ela possuía longos cabelos louros, sempre muito bem cuidados. Suas características com tonalidades claras coincidiam com a pureza e inocência da linda infância que a menina levava.
Certo dia, Clara resolveu doar seu lindo cabelo para pessoas que estão passando por momentos difíceis na luta contra o câncer. Ela e sua mãe optaram por dirigirem-se a um salão de beleza que não ficava muito longe de sua casa, e lá foram elas, a pé pelas ruas da cidade.
No caminho, a mãe da menina resolveu passar em uma loja de roupas e, entre os corredores, Clara ficou brincando, até que de repente esbarrou em uma pessoa: um homem careca. A menina sabe que não pode falar com qualquer estranho que lhe apareça, mas o homem era tão simpático e Clara estava tão ansiosa para doar seu cabelo, que acabou contando ao careca sobre o seu plano de ajudar as pessoas.
O homem que não era nem um pouco bobo, encontrou a oportunidade perfeita para adquirir cabelos, e o melhor, gratuitamente! Lá foi ele correndo para casa, para maquiar-se e vestir-se como mulher o mais rápido possível.
Quando Clara e a mãe chegaram ao salão de beleza, foram atendidas por uma mulher de vestido e brincos longos, batom vermelho, cílios postiços e um lenço bem colorido na cabeça.
Não demorou muito para perceberem que tinha algo de errado. A mulher cortou o cabelo da menina totalmente sem jeito e o telefone não parava de tocar, pois não havia ninguém para atender. A mãe de Clara não sabia o que fazer mas, por sorte, não demorou muito para uma viatura da polícia chegar.
Os policiais disseram que receberam uma denúncia de que um homem vestido de mulher havia amarrado as verdadeiras funcionárias do salão no banheiro, e precisavam fiscalizar o local. Bastaram alguns passos dos policiais para a falsa mulher pegar o cabelo cortado de Clara e sair correndo para fugir e garantir as madeixas.
A mãe de Clara começou a gritar, os policiais estavam tentando desamarrar as funcionárias e a menina resolveu seguir o homem e salvar seu precioso cabelo. Aquela agitação toda parecia coisa de filme, mas o homem mal conseguia correr com o vestido longo. A cada passo que dava, ficava mais enrolado, até que caiu no chão e Clara pulou por cima dele, pegou o cabelo de suas mãos e tirou o lenço da cabeça do homem.
Todos que estavam na rua aplaudiram a heroína Clara, porém ela não estava feliz, estava com peso na consciência. Nada disso teria acontecido se ela não tivesse conversado com este estranho.
Mas tudo se resolveu: o careca foi levado à delegacia, a mãe de Clara perdoou-a pela desobediência e Clara conseguiu doar seu cabelo a quem realmente precisava, além de ter aprendido verdadeiramente que é importante seguir os conselhos dados pelos nossos pais.
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todotexto · 6 years
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A causa secreta - Machado de Assis
Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.
Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.
- Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
- Não, nunca o vi. Quem é?
- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.
- Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.
- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
- Sabe que estou casado?
- Não sabia.
- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
- Domingo?
- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
- Não, respondeu a moça.
- Vai ouvir uma ação bonita.
- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
" Singular homem!" pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
- Valeu? perguntou Fortunato.
- Valeu o quê?
- Vamos fundar uma casa de saúde?
- Não valeu nada; estou brincando.
- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.
- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.
- Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
- Deixe ver o pulso.
- Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.
- Que é? perguntou-lhe.
- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
- Mate-o logo! disse-lhe.
- Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha  medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
- Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
- Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.
- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
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todotexto · 6 years
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todotexto · 6 years
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