𝚄𝚖 𝚁𝚎𝚝𝚛𝚊𝚝𝚘 𝚍𝚎 𝙼𝚒𝚕 𝙲𝚘𝚛𝚎𝚜 𝙳𝚎𝚜𝚋𝚘𝚝𝚊𝚍𝚊𝚜
Memórias são como pinturas, ou como páginas escritas de um livro interrompido ao sabor do tempo. Este, sempre consegue deixar tudo em tons de sépia, e dele, não se pode fugir; nem mesmo o coelho que se abriga em sua toca para fugir das raposas, ou o cervo que ao menor estalido toma os campos em uma fuga ao sabor do vento, ou quiçá o fugitivo que agarra qualquer esperança de se manter com sua liberdade. O tempo recai sobre todos, em cada segundo, a cada suspiro longo e qualquer ligeiro pensamento. Nos acompanha desde quando ainda estamos tomando a forma de um ser e desde o primeiro sopro de ar nos pulmões, lembrando constantemente a cada caminhar de um ponteiro que aquela narrativa está fadada ao fim em algum momento; e que enquanto saboreamos o doce e o amargo de viver, que enquanto amamos, rimos e somos tomados e preenchidos e desgovernados e governados e dilacerados e reconstruídos pelos sentimentos, pelas sensações e percepções, temos uma data final. Conforme os dias transcorrem como areia, a pintura aos poucos começa a ser corroída e as páginas do livro se tornam amareladas, permanecendo vívidas apenas aos que já apreciaram a obra. Todas são únicas, e acho que isso é o que torna a vida interessante.
Sabe... Aquele âmago que apenas vislumbramos através dos olhos de alguém, o infinito que as pessoas costumam guardar, repleto de nebulosas, galáxias e constelações. Nunca se pode conhecer tudo, mas sempre se pode apreciar o que é mostrado. Eu, porém, sou um livro com mais páginas do que o comum, daqueles espessos com letras pequenas e uma capa de couro que não é tão atraente assim e que certamente parece ser parte de uma enciclopédia. Acho que é uma descrição adequada. O tempo, porém, me acompanha com seus tons terrosos, roubando todas as memórias que se tornam turvas com o decorrer das décadas e dos séculos. Às vezes, esqueço quem sou e me perco dentro dessas constelações, e em algum momento em meio a essa dança initerrupta com a ampulheta, comecei a realmente escrever, para me lembrar de todas as pessoas e todas as memórias que não quero perder. Porque são minhas, e porque fazem parte da experiência bonita e efêmera que é existir, viver, fazer parte do processo criativo de jogar cores em uma tela e transformar em algo mais. Hoje particularmente me sinto melancólico. A bem da verdade, não há uma descrição para o sentimento, mas em toda minha simplicidade humana (ou não-humana), tento explicar em palavras.
Mais do que nos outros dias, sinto o dragão que queima e habita dentro de mim se rebelar, dilacerar meu coração com feridas profundas de um passado que realmente gostaria que o tempo pudesse desbotar. Ele anseia por se libertar, por voar sem rumo algum e isolar-se em qualquer lugar onde não existisse mais nada além da relva, abrigo e uma cachoeira e assim permanecer, ou enervar-se em chamas. Sinto falta de casa, da casa comunal, das noites de ritual, de caçar e de me conectar com o sagrado. Sinto falta do cheiro de especiarias, fumaça e incenso de Ivarr e de sua sabedoria rabugenta. Não sei quando comecei a me sentir deslocado, tão recolhido dentro de mim que lugar nenhum no mundo parece ser um lugar para se chamar de lar, por mais que haja saudade e por mais que goste de Nevermore.
Talvez tudo tenha sido desencadeado por frustração durante as pesquisas sobre o sangue sintético ou em uma solidão por sentir-me incompreendido, ou incapaz de ser compreendido.
Por mais que saiba que não deveria temer tanto, ainda sou reticente em me transformar, em deixar meu dragão emergir ou em assumir a forma crepitante em meu coração. Magin'guk ainda me assombra, bem como os horrores que alguém pode fazer para caçar a minha espécie. Nenhum lugar nunca é seguro. E ainda penso sobre aquele dia em noites insones como essa.
Meu chá esfriou.
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