Nicole Oresme, o fundador da ciência moderna em plena Peste Negra
Tanto Copérnico como Galileu não fizeram mais do que retomar as ideias que tiveram seu ponto alto em plena Idade Média com Nicole Oresme (1320-1382), o pensador mais original do século XIV e um dos maiores e mais completos gênios de todos os tempos, só comparado a Leonardo da Vinci.
A lembrança e invocação do nome e do legado de Oresme agora são mais do que oportunas e apropriadas, já que ele viveu, tal como nós hoje, em tempos de pandemia, ele da Peste Negra, a mais devastadora da história, que ceifou cerca de um terço da população europeia da época, o que causou muitos atrasos e perdas, quer sejam humanas, científicas, culturais, religiosas e artísticas.
Portanto, o fato de Oresme ter realizado seus feitos intelectuais prodigiosos em tal época, de impactos econômicos e sociais negativos e baixa produção científica, por si só já chega a ser extraordinário, ainda mais por ter se notabilizado não só na matemática como em vários campos do conhecimento, como a filosofia, a psicologia, a economia, as ciências físicas e naturais, a astronomia, a teologia e as artes musicais.
Como matemático, Oresme introduziu métodos de cálculo que prenunciaram o cálculo integral e elaborou conceitos fundamentais de Geometria Analítica, antecipando-se a Descartes.
Como economista, retraçou a história do dinheiro, explicou sua função econômica e condenou severamente a prática de alterar seu valor. Embora assumisse a esse respeito o papel de um teórico político, e não propriamente o de um economista, descreveu os efeitos econômicos das flutuações monetárias.
Como físico, Oresme foi o descobridor da curvatura da luz através da refração atmosférica, embora até hoje o crédito por esse feito seja atribuído a Robert Hooke.
Mas sua maior proeza nesse campo foi o de ter estudado os movimentos uniforme e uniformemente variado e deduzido o teorema da velocidade média e a lei da queda dos corpos, que é mais frequentemente atribuída a Galileu.
Antes de Copérnico, Oresme demonstrou em seu tratado teológico De communicatione idiomatum in Christo, que as razões propostas pela física Aristotélica acerca do movimento da Terra não eram válidas, para o que invocou o argumento da simplicidade a favor da teoria de que é a Terra que se move, e não os corpos celestiais.
No geral, Oresme baseava sua teoria da rotação da Terra sobre razões físico-matemáticas bem melhores e mais explícitas do que aquelas que foram dadas mais de um século depois por Copérnico.
Jamais a Igreja contestou as ideias de Oresme, que era professor de teologia no Colégio de Navarra, em Paris, bispo de Lisieux e desfrutava de grande prestígio – como conselheiro – na corte de Carlos V. Como dizia o o historiador medievalista francês Gustave Cohen (1879-1958), “As trevas da Idade Média não são senão aquelas de nossa ignorância.”
Por Cláudio Tsuyoshi Suenaga
Portrait of Nicole Oresme: Miniature from Oresme’s Traité de l’espère, Bibliothèque Nationale, Paris, France, fonds français 565, fol. 1r.
Há 702 anos nascia (em dia e mês desconhecidos, de família desconhecida, na aldeia de Allemagne, atual Fleury-sur-Orne, perto de Caen, diocese de Bayeux, na Normandia) Nicole Oresme (falecido em 11 de julho de 1382 em Lisieux), o verdadeiro e legítimo fundador da ciência moderna.
A lembrança e invocação do seu nome e de seu legado agora são mais do que oportunas e apropriadas, já que ele viveu, tal como nós hoje, em tempos de pandemia, ele da Peste Negra, a mais devastadora da história, que ceifou de 75 a 200 milhões de vidas na Eurásia (o pico ocorreu entre 1347 e 1351), ou cerca de um terço da população europeia da época, o que causou muitos atrasos e perdas, quer sejam humanas, científicas, culturais, religiosas e artísticas.
Portanto, o fato de Oresme ter realizado seus feitos intelectuais prodigiosos em tal época, de impactos econômicos e sociais negativos e baixa produção científica, por si só já chega a ser extraordinário, ainda mais por ter se notabilizado não só na matemática como em vários campos do conhecimento, como a filosofia, a psicologia, a economia, as ciências físicas e naturais, a astronomia, a astrologia, a teologia e as artes musicais.
Um dos filósofos escolásticos mais eminentes do século XIV, Oresme estudou Arte em Paris por volta de 1340 com o filósofo e religioso francês Jean Buridan (1300-1358), o chamado fundador da escola francesa de filosofia natural, e com Alberto da Saxônia (1320-1390), e lá recebeu o Magister Artium. Ele já era um mestre regente em artes em 1342 durante a crise da filosofia natural do frade franciscano, filósofo, lógico e teólogo escolástico inglês Guilherme de Ockham (1285-1347).
Em 1348, Oresme era um estudante de teologia no Colégio de Navarra da Universidade de Paris (uma instituição para estudantes pobres, patrocinado e subsidiado pela realeza, o que torna provável que ele veio de uma família de camponeses).
Em 1356 doutorou-se, e no mesmo ano tornou-se grão-mestre (grand-maître) do Colégio de Navarra.
Em 2 de novembro de 1359, tornou-se “secretaire du roi”, e no ano seguinte se tornou capelão e conselheiro de Carlos V (1338-1380, rei a partir de 1364).
Em 23 de novembro de 1362, ano em que se tornou mestre em teologia, Oresme foi nomeado cônego da Catedral de Rouen. Na época desta nomeação, ele ainda lecionava regularmente na Universidade de Paris.
Por volta de 1369, iniciou uma série de traduções de obras aristotélicas a pedido de Carlos V, que lhe concedeu uma pensão em 1371. Como a maioria de seus contemporâneos eruditos, Oresme escreveu principalmente em latim, mas a pedido do rei Carlos V, também escreveu em francês, fornecendo versões francesas de suas próprias obras e de obras selecionadas de Aristóteles.
Durante seu mandato nesses sucessivos cargos na Catedral de Rouen (1362-1377), Oresme passou muito tempo em Paris, especialmente no contexto de cuidar dos assuntos da Universidade. Embora muitos documentos comprovem a permanência de Oresme em Paris, não podemos inferir que ele também lecionava lá naquela época.
Por causa do trabalho incansável de Oresme para Carlos V e a família real, com o apoio do rei, em 3 de agosto de 1377, Oresme alcançou o posto de Bispo de Lisieux (pequena cidade do departamento de Calvados, na região da Baixa-Normandia).
Parece que Oresme não fixou residência em Lisieux até setembro de 1380, e pouco se sabe dos últimos cinco anos de sua vida. Oresme morreu em Lisieux em 11 de julho de 1382, dois anos após a morte do rei Carlos, e foi sepultado na Catedral.
Oresme demonstrou em seu tratado teológico De communicatione idiomatum in Christo, que as razões propostas pela física aristotélica que negavam o movimento da Terra não eram válidas, e quase dois séculos antes de Copérnico (1473-1543), invocou o argumento da simplicidade de Ockham a favor da teoria de que é a Terra que se move, e não os corpos celestiais.
Em seu Livre du ciel et du monde (1377), Oresme discutiu uma série de evidências a favor e contra a rotação da Terra em seu eixo. A partir de considerações astronômicas, sustentou que se a Terra é que estivesse se movendo e não as esferas celestiais, todos os movimentos que vemos nos céus seriam exatamente iguais às das esferas. Ele rejeitou o argumento físico de que se a Terra estivesse se movendo, o ar seria deixado para trás, causando um grande vento de leste a oeste. Em sua concepção, a terra, a água e o ar compartilhariam o mesmo movimento. Quanto à passagem bíblica que fala do movimento do Sol, ele conclui que “esta passagem está de acordo com o uso habitual da linguagem popular” e não deve ser tomada literalmente. Ele também observou que seria mais econômico para a Terra girar em seu eixo do que a toda a imensa esfera das estrelas. No entanto, ele reconheceu que nenhum desses argumentos era conclusivo e que muitos continuariam sustentando que “os céus se movem e não a Terra”.
Desenhos e diagramas de Oresme em seu Livre du ciel et du monde.
No campo da matemática, Oresme desenvolveu a primeira prova da divergência da série harmônica, algo que só foi replicado mais de três séculos depois pelos irmãos suíços Jakob (1654-1705) e Johann (1667-1748) Bernoulli.
Ele também trabalhou a noção de probabilidade sobre sequências infinitas, algo que só seria desenvolvido cinco séculos depois. Desenvolveu a noção de frações incomensuráveis, frações que não podiam ser expressas como potências umas das outras, e elaborou argumentos estatísticos probabilísticos quanto à sua frequência relativa.
A partir disso, ele argumentou que era muito provável que a duração do dia e do ano fossem incomensuráveis (irracionais), como de fato eram os períodos dos movimentos da Lua e dos planetas, e observou que as conjunções e oposições planetárias nunca ocorreriam exatamente da mesma maneira. Oresme sustentou que isso refutaria as afirmações dos astrólogos que pensavam que sabiam “precipitadamente e com exatidão pontual, os movimentos, aspectos, conjunções e oposições”.
Em sua crítica à astrologia em seu Livre de divinacions, Oresme não nega as influências dos corpos celestes nos eventos terrestres em todas as escalas, mas afirma, de acordo com uma opinião comumente aceita, que os arranjos dos corpos celestes poderiam ser eventos puramente simbólicos.
Quanto à previsibilidade de grandes eventos como pragas, fomes, inundações e guerras, clima, ventos e tempestades, bem como medicina, com influências nos humores, os quatro fluidos aristotélicos do corpo, Oresme critica tudo como sendo mal direcionado, embora aceite que a previsão é uma área legítima de estudo e argumenta que o efeito sobre o tempo é menos conhecido do que o efeito sobre grandes eventos. Ele observa que os marinheiros e fazendeiros são melhores em prever o tempo do que os astrólogos, e ataca especificamente a base astrológica da previsão, observando corretamente que o zodíaco se moveu em relação às estrelas fixas (por causa da precessão dos equinócios) desde que o zodíaco foi descrito pela primeira vez em tempos antigos.
Em suma, Oresme manifesta dúvidas, mas aceita a existência das influências físicas das estrelas e planetas (incluindo o Sol e a Lua) na Terra. Ele aceita coisas que um cético moderno rejeitaria, e rejeita outras – como a capacidade de conhecimento dos movimentos planetários e os efeitos no clima – que são aceitas pela ciência moderna. Quanto ao que constitui grande parte da prática astrológica moderna, isto é, consultar as estrelas para saber qual o melhor momento para fazer coisas relacionadas ao amor, negócios, política, jogos, etc., Oresme as classifica como artes “totalmente falsas”.
Alguns historiadores defendem que Oresme é o criador da Geometria Analítica antes de René Descartes (1596-1650), por ter representado graficamente em Tractatus de configurationibus qualitatum et motuum (1370), sua mais importante contribuição para a matemática, leis que confrontavam a variável dependente (latitudo) com a independente (longitudo), à medida que se permitia que esta última fosse objeto de pequenos acréscimos.
Tractatus de configurationibus qualitatum et motuum
Por uma questão de clareza, Oresme concebeu a ideia de visualizar esses conceitos como figuras planas, aproximando-se do que hoje chamaríamos de coordenadas retangulares. A intensidade da qualidade foi representada por um comprimento ou latitudo proporcional à intensidade erigida perpendicular à base em um determinado ponto da linha de base, que representa o longitudo.
Oresme propôs que a forma geométrica de tal figura pudesse ser considerada como correspondendo a uma característica da própria qualidade. Oresme definiu uma qualidade uniforme como aquela que é representada por uma linha paralela à longitude, e qualquer outra qualidade como diferente. Qualidades uniformemente variadas são representadas por uma linha reta inclinada ao eixo da longitude, enquanto ele descreveu muitos casos de qualidades não uniformemente variáveis. Oresme estendeu essa doutrina a figuras de três dimensões. Ele considerou essa análise aplicável a muitas qualidades diferentes, como gostosura, brancura e doçura. Significativamente para desenvolvimentos posteriores, Oresme aplicou este conceito à análise do movimento local onde o latitudo ou intensidade representava a velocidade, o longitudo representava o tempo, e a área da figura representava a distância percorrida.
Ele mostra que seu método de calcular a latitude das formas é aplicável ao movimento de um ponto, desde que o tempo seja tomado como longitude e a velocidade como latitude; quantidade é, então, o espaço percorrido em um determinado tempo. Em virtude dessa transposição, o teorema do latitudo uniformiter difformis tornou-se a lei do espaço percorrido em caso de movimento uniformemente variado. Assim, Oresme se antecipou em dois séculos às deduções de Galileu Galilei (1564-1642) sobre os movimentos uniforme e uniformemente variados e o teorema da velocidade média e a lei da queda dos corpos.
Com seu Tratado sobre a origem, natureza, lei e alterações do dinheiro (De origine, natura, jure et mutationibus monetarum), um dos primeiros manuscritos dedicados exclusivamente à questão econômica (redescoberta somente em 1862 e traduzida em 1864), Oresme trouxe uma visão interessante sobre a concepção medieval de dinheiro, afirmando ser ele um produto originário do mercado e não do Estado, que ele era uma mercadoria a mais e não apenas um meio de troca, e por isso, originalmente, certificadores privados informavam seus clientes sobre a pureza do metal usado nas moedas.
Ele asseverou que a inflação nada mais é do que o resultado da falsificação da pureza dos metais mediante um decreto do Estado, uma vez que este nacionalizou o dinheiro. Esta teoria econômica tem pontos em comum com a contemporânea Teoria Austríaca do Ciclo Econômico, que só surgiu quase sete séculos mais tarde. Precursor da ciência da economia política, Oresme já admoestava que a inflação é predominantemente uma criação do governo e que prejudicava o comércio e a economia e implicava o declínio da civilização, abrindo o caminho para a tirania. E ainda recomendava que para evitar isso, deveria-se impedir que o governo se intrometesse com o dinheiro…
Oresme foi também um psicólogo notável. Usando um método empírico, descobriu o “inconsciente” psicológico e sua grande importância para a percepção e o comportamento, e investigou todo o complexo de fenômenos da psique humana. Estava certo da atividade dos “sentidos internos” (sensus interior) e da construtividade, complexidade e subjetividade da percepção do mundo. A mente inovadora e ousada de Oresme antecipou conceitos essenciais da psicologia dos séculos XIX e XX, especialmente nos campos da psicologia cognitiva, psicologia da percepção, psicologia da consciência e psicofísica.
Oresme compôs um tratado especial sobre a percepção e sua desordem e delusão (De causis mirabilium), onde examinou todos os sentidos (visão, audição, tato, olfato, paladar) e funções cognitivas. Com o mesmo método utilizado pelos psicólogos do século XX, nomeadamente através da análise de delírios e desordens, Oresme já reconhecia muitas leis essenciais da percepção, por exemplo a “Gestaltgesetze” (lei da forma) 500 anos antes do filósofo austríaco Christian von Ehrenfels (1859-1932), limites de percepção (maxima et minima), etc.
Amigo mais jovem do compositor, matemático, diplomata, militar, musicólogo, filósofo e poeta francês Philippe de Vitry (1291-1361), o famoso teórico musical, compositor e bispo de Meaux, Oresme pode ser considerado o fundador da musicologia moderna. Oresme lidou com quase todas as áreas da musicologia no sentido moderno, como a acústica, a estética musical, a fisiologia da voz e da audição, a psicologia da audição, a teoria musical da medição, a teoria musical, a performance musical e a filosofia musical.
Em sua obra musicológica Configuratio qualitatum and the functional pluridimensionality, Oresme antecipa os diagramas musicológicos contemporâneos e, o mais importante, a notação musical que igualmente quantifica e representa visualmente as variações de um sonus de acordo com determinadas medidas de extensio (intervalos de tempo). A esfera da música não apenas forneceu à teoria de Oresme uma legitimação empírica, mas também ajudou a exemplificar os vários tipos de configurações uniformes e diferentes que Oresme havia desenvolvido, notadamente a ideia de que as configurações dotavam qualidades de efeitos específicos, estéticos ou não, que poderiam ser capturados analiticamente por sua representação geométrica.
Este último ponto ajuda a explicar a abordagem estética abrangente de Oresme aos fenômenos naturais, que se baseava na convicção de que a avaliação estética da experiência sensorial (graficamente representável) fornecia um princípio de análise adequado. Neste contexto, a música voltou a desempenhar um papel importante como modelo da “estética da complexidade e do infinito” favorecida pela mentalité do século XIV.
Oresme buscou os parâmetros do sonus experimentalmente tanto no nível microestrutural e acústico do tom único quanto no nível macroestrutural da música uníssono ou polifônica. Na tentativa de capturar analiticamente os vários parâmetros físicos, psicológicos e estéticos do sonus deacordo com a extensio, Oresme desejava representá-los como as condições para os graus infinitamente variáveis de pulchritudo (beleza) e turpitudo (obscenidade), ou da “beleza da nudez”. O grau em que ele desenvolveu este método é único para a Idade Média, representando a descrição matemática mais completa dos fenômenos musicais antes de Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze (1638) de Galileu.
Digno de nota neste empreendimento é não apenas a descoberta de “tons parciais” ou sobretons três séculos antes do padre, teólogo, matemático, teórico musical e filósofo francês Marin Mersenne (1588-1648), mas também o reconhecimento da relação entre sobretons e tonalidade de cor, que Oresme explicou em uma detalhada teoria físico-matemática, cujo nível de complexidade só foi alcançado novamente no século XIX pelo matemático, médico e físico alemão Hermann von Helmholtz (1821-1894).
Finalmente, devemos também mencionar a compreensão mecanicista de Oresme do sonus em seu Tractatus de configuratione et qualitatum motuum como um tipo específico de movimento descontínuo (vibração), da ressonância como um fenômeno harmônico, e da relação de consonância e dissonância, que foi mesmo além da teoria da consonância da coincidência bem-sucedida, mas errada, formulada no século XVII.
A demonstração de Oresme de uma correspondência entre um método matemático e um fenômeno físico (som) representa um caso excepcionalmente raro, tanto para o século XIV, em geral, quanto para a obra de Oresme em particular, marco no desenvolvimento do espírito quantificador que caracteriza a época moderna.
Com sua “teoria das espécies” muito especial (multiplicatio specierum), Oresme formulou a primeira e correta teoria da “mecânica ondulatória do som e da luz”, 300 anos antes do físico, matemático, astrônomo e horologista neerlandês Christian Huygens (1629-1695), ao descrever um puro transporte de energia sem propagação de material. O termo “espécie” no sentido de Oresme significa o mesmo que nosso termo moderno “forma de onda”. Sua outra proeza foi descobrir a curvatura da luz através da refração atmosférica, crédito que só foi dado três séculos depois ao cientista inglês Robert Hooke (1635-1703).
Em sua estética musical, Oresme formulou uma moderna “teoria da percepção” subjetiva, que não era a percepção da beleza objetiva da criação de Deus, mas o processo construtivo da percepção, que causa a percepção da beleza ou da feiúra nos sentidos. Portanto, pode-se ver que cada indivíduo percebe um outro “mundo”.
Muitos dos insights de Oresme em outras disciplinas como matemática, física, filosofia, psicologia estão intimamente ligados à “Música Modelo” (incomum para o pensamento atual). O Musica funcionou como uma espécie de “Computador da Idade Média” e, neste sentido, representou o hino abrangente da nova consciência quantitativo-analítica do século XIV.
Enfim, muitas visões essenciais da autoimagem dos tempos modernos, tais como sua compreensão da incomensurabilidade das proporções naturais, da complexidade, da indeterminação, da infinita mutabilidade do mundo, etc., foram antecipadas por Oresme. E embora isso não seja confirmado, Oresme teria ainda especulado sobre a possibilidade de haver outros mundos habitados no universo.
Por todos os seus feitos e para todos os efeitos, somos tentados a desconfiar se Oresme, tal como outros gênios como Leonardo da Vinci (1452-1519), não seria uma espécie de viajante do tempo que foi parar naquela época por acidente ou para lá enviado para alterar de alguma forma a história usando o conhecimento e/ou a tecnologia de seu próprio tempo, seja para o bem ou para o mal, criando uma história alternativa como resultado.
Bibliografia recomendada
Duhem, Pierre. “Nicole Oresme”, in The Catholic Encyclopedia, vol.11, New York: Robert Appleton Company, 1911.
Taschow, Ulrich. Nicole Oresme und der Frühling der Moderne, Halle, Avox Medien-Verlag, 2003.
Nicole Oresme’s De visione stellarum (On seeing the stars): a critical edition of Oresme’s treatise on optics and atmospheric refraction, translated by Dan Burton (Leiden; Boston: Brill, 2007).
Nicole Oresme and The marvels of nature: a study of his De causis mirabilium, translated by Bert Hansen (Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1985).
Questiones super quatuor libros meteororum, in SC McCluskey, ed, Nicole Oresme on Light, Color and the Rainbow: An Edition and Translation, with introduction and critical notes, of Part of Book Three of his Questiones super quatuor libros meteororum (PhD dissertation, University of Wisconsin, 1974).
Nicole Oresme and the kinematics of circular motion: Tractatus de commensurabilitate vel incommensurabilitate motuum celi, translated by Edward Grant (Madison: University of Wisconsin Press, 1971).
Nicole Oresme and the medieval geometry of qualities and motions: a treatise on the uniformity and difformity of intensities known as Tractatus de configurationibus qualitatum et motuum, translated by Marshall Clagett (Madison: University of Wisconsin Press, 1968).
Le Livre du ciel et du monde. A. D. Menut and A. J. Denomy, ed. and trans. Madison: University of Wisconsin Press, 1968.
De proportionibus proportionum and Ad pauca respicientes. Edward Grant, ed. and trans. Madison: University of Wisconsin Press, 1966.
The De moneta of N. Oresme, and English Mint documents, translated by C. Johnson (London, 1956).
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Paradoxos da História
A leitura do surpreendente "A Mulher no Tempo das Catedrais", da famosa historiadora medievalista francesa Régine Pernoud (1909-1998), editado originalmente em 1980, chamou a minha atenção para um fenómeno curiosíssimo, um efeito pernicioso do Renascimento e do movimento universitário que eclodiu na Europa no final da Idade Média, no que concerne ao papel social da mulher. Efeito esse que perdurou durante o Antigo Regime e se acentuou até, após a Revolução, com a disseminação do código napoleónico pela Europa continental e pelas suas colónias.
Em traços muito gerais e simplistas, até porque nem sou historiador nem tenho aspirações a fazer crítica ou exaltação do trabalho de alguém como Régine Pernoud, eu diria que a obra fala essencialmente de como o Cristianismo primitivo, dos padres da Igreja, libertou a mulher de um papel secundário e desprovido de direitos, que detinha na sociedade greco-romana, para mais tarde ser novamente aprisionada pelos preconceitos da antiguidade, com a redescoberta do direito romano justinianeu e o seu estudo, batismo e aplicação sistemática pelo movimento universitário, que excluiu peremptoriamente as mulheres até quase ao século XX, e indiretamente pela conversão do aristotelismo à doutrina cristã, operada por São Tomás de Aquino, também ele um eminente universitário e expoente desse importante movimento.
O papel da mulher na sociedade greco-romana era de facto a de um menor ou incapaz, sempre sujeita a uma tutela masculina. Se o pater familias tinha um poder absoluto, de vida ou de morte, sobre a descendência, esse poder, com algumas limitações, sobretudo de ordem patrimonial e relacionadas com a titularidade e administração do dote, passava quase integralmente para o marido. E se este repudiava a mulher, ou esta enviuvava, a tutela transmitia-se integralmente de regresso ao pai, ou se este já não existisse, aos irmãos ou até aos filhos varões. A mulher romana nunca alcançava a emancipação. Estava sempre sob tutela legal de um parente masculino, que tinha amplos poderes, até para administrar os seus bens. Era um regime de completa e total incapacidade legal.
Não admira assim a adesão das mulheres romanizadas ao Cristianismo. Apesar de São Paulo insistir na inferioridade da mulher, relativamente ao homem, os evangelhos eram bastante mais igualitários e defendiam as mulheres dos abusos masculinos, conferindo-lhes direitos inexistentes na cultura romana, nomeadamente a emancipação, nem que fosse necessário recolherem-se a um convento para a obterem em absoluto, como fizeram regularmente varias figuras importantes na Idade Média, com destaque em França para a Abadia de Fontevraud.
As mulheres foram assim as grandes impulsionadoras da cristianização da Europa. Desde Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que muito terá contribuído para a sua conversão e também para a emancipação da mulher cristã, partindo, juntamente com muitas seguidoras, em peregrinação à terra santa, onde terá descoberto, segundo a tradição cristã, o local de crucificação de Jesus Cristo e ordenado a construção de igrejas, como a da Natividade em Belém e a do Santo Sepulcro em Jerusalém.
Mas também o primeiro rei dos Francos, Clóvis, converteu-se ao catolicismo por estímulo de sua esposa, Clotilde da Borgonha, ato de imensa importância na história subsequente da Europa.
A oriente temos também a figura importante de Santa Olga, princesa regente de Kiev que teve um papel fulcral na cristianização da Ucrânia e bem assim de Ana Porfirogénita, filha do imperador Bizantino Romano II que, ao casar-se com o rei Vladimir de Kiev, lhe exigiu a prévia conversão ao Cristianismo Ao retornar triunfalmente a Kiev, Vladimir exortou os residentes da sua capital a irem ao Dniepre para receberem o batismo. Esse batismo em massa tornou-se o evento inaugural do cristianismo na Rússia de Kiev.
Como estes, outros exemplos podem ser citados, da influência das mulheres na Cristianização da Europa, a ponto de Régine Pernoud concluir que foram estas as principais responsáveis pela expansão do Cristianismo, primeiro no império romano e depois entre os povos pagãos da Europa.
O principal atrativo do cristianismo, para as mulheres, seria precisamente a emancipação relativamente ao estatuto de incapaz, que detinham no mundo romano.
Consequentemente à mulher teria sido permitido gozar de uma posição de destaque, na Europa medieval, citando mulheres exemplares, que se destacaram na governação, na liderança militar e na influência política, durante a Idade Média. Nomes como Bertrade de Monfort, Ermengarda da Bretanha, Matilde de Anjou e Matilde "a imperatriz", Leonor da Aquitânia, Adélia de Blois, a Rainha Ana de Kiev, Inês de Poitou, Matilde da Toscana, Leonor de Castela e finalmente, as duas figuras ímpares que foram Catarina de Siena e Joana d'Arc.
Como português acrescentaria ainda as nossas Rainha D. Teresa de Portugal e Rainha Santa Isabel, como figuras importantes da nossa história medieval, sem esquecer a pouco simpática mas influente Leonor Teles ou ainda a lendária Brites de Almeida, a heróica padeira de Aljubarrota.
Com o fim da Idade Média as mulheres eclipsaram-se da vida pública. Privadas do acesso à educação universitária, foram afastadas do poder, salvo raras exceções, como Catarina da Rússia e Maria Teresa da Áustria.
No caso português, datam porém deste período as duas únicas rainhas titulares da nossa história (se excluirmos o polémico, mas importante, reinado de D. Teresa), mas se D. Maria II ainda conseguiu ter um papel relevante, como estandarte do triunfo do constitucionalismo, após a guerra civil, já a bisavó D. Maria I era notoriamente incapaz e foi o filho, futuro D. João VI, quem exerceu a regência, durante a maior parte do seu reinado.
De tudo isto resulta uma ideia surpreendente. Do ponto de vista da emancipação feminina, a ascensão do Cristianismo, do feudalismo e do monaquismo foram momentos fundamentais, impulsionados por mulheres e onde estas alcançaram um estatuto de relativa igualdade com os homens. Paradoxalmente, as repúblicas democráticas da antiguidade, o Renascimento e o Iluminismo recolocaram a mulher num papel secundário, subordinada ao homem, impedida de aceder à educação e a um conjunto de profissões que já lhe tinha sido permitido exercer no passado.
Só o século XX trouxe a luta pela emancipação feminina e a preocupação com a igualdade de direitos e de oportunidades entre os géneros.
Curiosamente, Pernoud mostra-se bastante cética, no que respeita ao feminismo, porque vê nele não o direito à diferença que enriquece, mas sim à uniformização, a ascensão da mulher ao papel masculino, o que implica a renúncia à sua feminilidade, à capacidade de exercer o poder e o conhecimento de um modo único e feminino, diferente dos homens, ganhando assim a sociedade, com a diversidade de pontos de vista decorrente das diferenças entre os géneros.
Acho pertinente a crítica, sobretudo quando se verifica, na sociedade contemporânea, que Pernoud já não conheceu, que até o género passou a ser opcional e criativo, abolindo-se as características próprias de cada sexo, tornadas obsoletas e até ofensivas da liberdade individual.
Será que na ditadura do politicamente correto, haverá lugar para um modo masculino e feminino de olhar o mundo, como pretendia Régine Pernoud? Ou estaremos condenados a uma monotonia assexuada, de um mundo arco íris?
Tendencialmente a ideia seria multiplicar as visões do mundo pela multiplicação dos géneros. Mas essa via não nos conduzirá à ausência de género e à normalização de uma visão monolítica, politicamente correta, do mundo?
Olhando para a política de hoje, vejo muito mais em prática esta segunda hipótese do que a primeira.
22 de Maio de 2024
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