Tumgik
luizaaschiavo · 2 years
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Sentada em continência em um banco de madeira no centro da cozinha, conta repetidamente os cinquenta e dois azulejos marrons, torcendo para não ter que se levantar e interceder outra vez. Ao lado direito Ricardo segura, em pé, uma garrafa já meio vazia, dando um gole maior a cada vez que Verônica suplica que ele pare. No esquerdo, a mãe, sentada em uma cadeira, faz ameaças em tom solene pensando na missa mais tarde e nas contas acumuladas. Vê o carteiro se aproximar e pede que gritem mais baixo enquanto se afasta do cômodo, caminha olhando as próprias mãos e finge não ouvir o pai dizer qualquer coisa sobre não ser ela quem decide o volume de um teto que não é seu. Antes de pisar para o outro lado da porta, ouve o som da garrafa estilhaçando o chão e sente com antecedência o cansaço de, mais uma vez, colher os escombros. Reconhece o olhar desconcertado do homem parado do outro lado do portão, porque é o mesmo com o qual a olhavam os vizinhos. Ela responde com um sorriso de quem diz: acontece. Hoje era ela a ter de encarar os olhares de curiosidade e susto, mas poderia ter sido qualquer um deles, pensa. 
Pega a carta em mãos e sente o coração acelerar, tinha o nome de Maria escrito no remetente, esquece a guerra e senta no quintal para ler. Não se falavam há alguns dias, ela sabia que deveria responder mas o inevitável sentimento de que não tinha nada a dizer tornava esse ato impossível. As mãos começam a tremer, sente o coração partir por um término sem começo. Imagina a risada dela e ensaia mentalmente a despedida, os olhos se enchendo de lágrimas: talvez não queira saber, pondera. Não, contesta a mente a si mesma, não poderia ser, não haviam motivos nem contextos que justificassem: Encontraram-se apenas algumas vezes, caso Maria estivesse cansada bastaria não dizer nada. Olha o envelope sob mil distintos ângulos , começa e para de abri-lo muitas vezes e concluí que qualquer coisa que fosse precisaria esperar. Pedro aparece na porta e aponta duas vezes para a cozinha, as vozes estão mais altas e uma pancada grita no armário de madeira. Ela se levanta instantaneamente e caminha rápido até lá: Verônica de pé, parada em frente a Ricardo, beliscando seu braço, enquanto ele tenta ir na direção dos cacos de vidro no chão com os pés descalços. Ele diz que faz o que quiser, que ninguém se importa, mais uma porção de bobagens que ela já estava cansada de ouvir. Empurra o pai para um lado e a mãe para o outro, Pedro fica parado na porta observando com um olho a cena e com o outro o telefone. Tenta entender o que e por que estão dizendo, mas rapidamente percebe que é mais um round de velhos desacordos, consegue convencer o pai a ir dormir, consola Verônica, e se dá por vitoriosa. Assim que o silêncio preenche a casa, lembra da carta e volta ao quintal. 
Abre o envelope e lê: 
Querida Sô, 
    Não nos falamos desde ontem, talvez quando você ler isso a gente já tenha se falado, talvez não, nos dois casos sei que quando souber que você leu isso vou ficar vermelha por timidez. Não sei nem muito o que vou acabar escrevendo aqui, acho que um pouco do que não tenho coragem de dizer por mensagem. Sei que não nos conhecemos a muito tempo, mas desde que te vi daquela última vez só penso nos seus olhinhos imensos e no nariz que mexe bonitinho quando você sorri. Você me faz feliz, queria que você soubesse. Estou com saudade de rir do seu lado e te vencer naquela brincadeira de lutar com o dedão, e também estou apaixonada por você. Muito mesmo. Quero te ver logo, me telefona, manda mensagem, carta ou sinal de fumaça quando quiser!
                        Beijo com estalo, como você odeia que eu faça. 
Maria 
    Junto a carta, um desenho seu com os cachos bagunçados, a boca cerrada escondendo um sorriso e os olhos maiores do que de fato eram. Com um fundo rosado mesclado a branco e flores brancas pintadas no cabelo. Era bonita, mas não sabia se era ela. 
As mãos suaram, o coração disparou e sem explicação começou a sentir as raízes do cabelo perfurarem o escalpo. Parou. Sentada entre a horta de Verônica e o Araçá-vermelho, olhando fixo os postes de luz da calçada e a lua crescente que se confundiam em brilho e tamanho. Alternadamente o cérebro bombardeava imagens dos dedos entrelaçados, de trechos da carta e de um imaginado pranto de Maria. No cenário que se autoproclamou clarividente estão nítidos os olhos dela se enchendo de lágrimas até romperem a barragem ciliar, as mãos de Sofia eternamente trêmulas. Concatena explicações mal-sucedidas sobre o choro agendado e sente em suas vértebras de papel as muitas toneladas que pesam essa felicidade. Lamenta a falta dos pensar-sentires que deveriam tê-la tomado de sopetão e sente a culpa do que ainda não fez. Simultaneamente a ideia de não ter mais Maria, não sentir seu corpo quente, não ouvir seu riso largo ou tocar sua mão gelada, abre um vácuo imenso no peito que a pressiona ainda mais adentro-embaixo. Quer tanto ser melhor, por Maria, para Maria: esse nome passa em sua mente repetidas vezes como rezando o terço. Queria melhor pensar, melhor sentir, melhor dizer. Ao menos ter algo a dizer, mesmo que fosse um adeus, que permanecesse depois que o sentimento partisse.
    As nuvens começam a chorar em sua cabeça e ela se deixa permanecer, o corpo rijo e o cabelo segurando as gotículas por entre os cachos. A ideia de Maria fica cada vez mais distante e metálica, o pensamento viaja em busca do que de fato era e se lembra que o pranto ainda não foi. Fixa bem os pés no quintal como para se prevenir de sair flutuando em direção ao céu junto daquele broto de amor que não desabrocharia, tinha certeza. Sequer sabia quem era Maria, para além do que os olhos podem ver, também ela só via Sofia pelas lentes alteradas do querer-amar. Sentia que precisava contar a ela quem realmente era, sem saber ao certo o que seria contado caso fosse absolutamente sincera, tudo então parecia um esconder-se. Olhou para os dedos que não mais pareciam lhe pertencerem, para os pés fincados na terra que  poderiam ser de qualquer outro alguém, para as gotas de chuva incansavelmente pingando, nutrindo, pulsando em si e no solo. 
     Culpada de estar vivendo uma história que não a sua, presa em um corpo que se movia por entre a sala e cozinha tranquilamente equilibrando conflitos, mesmo corpo autômato que beijava Maria sem saber ao certo. Que certeza poderia ter se o viver parecia imediato demais para qualquer ponderação? Desconfiada de todo seu ser, exceto a pele que sentia regar pela água, mergulhando os dedos cada vez mais fundo na terra lamacenta, vê das pontas dos pés crescerem raízes. 
    Amarrada àquele quintal pelo âmago. 
Vendo a chuva pingar pelas folhas lisas do Araçá, contornando a circunferência dos frutos e o descaminho dos galhos, seus olhos se puseram a pingar também. Se lembrou do pranto de Maria e fez dele o seu. Numa angústia alegre de estar sempre à disposição de Pedro e Verônica, dos dedos das mãos surgiram finos galhos. A tempestade fazendo florescer o jardim dentro e fora, enquanto se agarrava no que já havia sido e no que havia de ser. Lembrou dos dedos entrelaçados com os dela e já não sabia mais pensar a quem eles pertenciam. Recordou das casa vozes altas de expressão incerta e cerrou os olhos porque era melhor o seu choro do que o de Verônica. Sentiu uma tristeza vermelha se espalhando pelas veias, nutrindo os galhos e as raízes, a chuva apertando cada vez mais. Quem era Maria? 
Parou de sentir o tempo, o som, o verde, só água. Água e Maria água e ela água e aquele quintal. Pensou nos olhos minúsculos e brilhantes que a viam com carinho, na paixão confessada na carta, no medo da perda e do caos. Viu em si uma felicidade miúda ao recordar do beijo barulhento e do toque, do desenho que Maria havia feito dela com olhos imensos. Gostava dessa sua versão. Um brilho foi brotando do centro de seu peito, invisível de fora. Ao abrir os olhos viu nascer de si uma flor, pequena, pulsando, pétalas escassas, fazendo orvalho. Os gritos cessaram, a imagem do riso substituiu a do pranto, o risco talvez valesse a pena em sua sordidez e melancolia. 
Sorriu aliviada.   
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luizaaschiavo · 3 years
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Vermelho e azul na paleta de madeira, antes cilindricamente posicionados a alguns centímetros de distância, resultam numa porção de roxo acinzentado e um copo de água leitosa, inútil, cor de chorume. Na tela, camadas e camadas de erro sob pinceladas espessas de tinta, nunca do mesmo tom. As caixas de tralha se espalham, se apossam, sufocam, dia por dia, invasão napoleônica pré-Waterloo. O trajeto da  porta até o banco em frente ao cavalete exige uma rotina cuidadosa e precisa para que não esbarre nos muitos cubos empilhados de papelão que guardam seus livros, fotos, roupas, bijuterias, revistas antigas, cartas de amor, herança e sabe-se mais o quê. Talvez ela saiba, provável que tenha etiquetado, catalogado e sistematizado todo o sistema de depósito que desenvolveu no decorrer dos anos. Não pedi tampouco ela deixaria que eu revirasse esse mar de coisas suas que não guarda na memória mas não se esquece. Essas são as coisas perigosas, porque não se sabe ao certo o efeito que elas exercem no presente, apagam os rastros de sua permanência, o que torna ainda mais difícil qualquer forma de reavaliação ou desprendimento. Como patógenos, se multiplicam fora do campo de visão, reproduzem-se pelo automatismo das células e quando a infecção é descoberta, já tomaram conta. 
Essa expansão, como a maioria delas, não começou de maneira declarada. Chegou de supetão e só fui me dar conta bem mais tarde: morávamos juntas a dois anos quando Camila pediu para colocar uma caixinha dentro do armário, me olhando através dos cílios com as mãos cruzadas, sabendo que eu seria incapaz de dizer não. Deixei. Era o único cômodo da casa sujeito a minhas decisões, condição pré-colocada: precisaria de um lugar meu, onde pudesse trabalhar, fazer cerâmica (na época não pintava) - e, na realidade, pouco importa o uso que daria ao espaço - um ambiente na casa que não estivesse sujeito à suas regras e desejos. Agora, caminho pelo labirinto que ela construiu para alcançar um novo tubo de tinta vermelha, posicionados: vermelho fresco, azul manchado e roxo meio seco, emprego esforço hermético na manipulação das pinceladas que ainda não formam objeto delimitado. De um traço violeta, ao adicionar vermelho em uma das extremidades, brotam duas mãos (se)semi tocando, a-lá A criação de Adão, quase alcanço uma ideia quando percebo a maçaneta girando forte e repetidamente, ela colocando força como se quebrar a porta fosse mais fácil do que me pedir que a abrisse. 
Giro a chave e ela entra desorientada, um envelope em mãos, os olhos e maxilar cerrados, expressão com a qual já me acostumei a ser consumida em uma base diária: preenchida pela certeza de que havia feito algo de errado, de novo. Que ela, como sempre, tinha precisado consertar mais uma das minhas falhas e agora vinha exigir meu perdão aos seus pés.  Martirizado que dava conta de tudo sozinha, como se isso não fosse fruto direto de sua compulsão própria por controle. Nos primeiros anos, isso unia o útil ao agradável, gostava da forma como ela me cuidava, ajudava, demonstrava preocupação genuína sobre todos os aspectos da vida que me despedaçaram. Passou a cuidar, pouco a pouco, de toda minha rotina, me lembrando em base diária meus afazeres, orientando os passos que deveria seguir para que tudo funcionasse perfeitamente: o horário que deveria sair para que não me atrasasse, assuntos que deveria evitar, manias que precisava esconder e mecanismos para a boa-imagem profissional e pessoal. Ela grita enquanto observo as marcas do tempo nas caixas, fala sobre alguma conta que não paguei, que o dinheiro anda pouco e que eu já não quero mais saber de nada. Seus gritos perdem cada dia um pouco mais de efeito, ocupando posição parecida à reunião semanal de trabalho ou telefonema do meu pai: compromissos inescapáveis, desses que resta apenas torcer para que acabe logo. Volto a pintar, o que a enfurece ainda mais, chegando ao ponto do monólogo, já roteirizado, em que me ordena procurar um novo emprego como se o que faço não passasse de brincadeira infantil ou delírio adolescente. A mulher de vinte e quatro anos que me incentivou a sair da vida escritório das oito às cinco, happy hour às sextas, amigo secreto de natal uma vez a cada dois anos onde o presente mais pessoal é um par de meias, em nada parece com a que divido essa cela. Ela continua falando, plano de fundo infernal, pouco consigo distinguir suas palavras que passam em rasante pelos meus ouvidos enquanto tento focar na construção dos corpos sobre a lona crua. Ela reclama que não respondo, mas no fundo gosta que eu lhe dê a permissão de conversar à sua maneira favorita: espelhada. Murmura mais algumas frases e bate à porta ao sair. 
Tanto tanto tempo perdido, retornam ao pó de que nunca saíram meus sonhos, ideias, aspirações, viajar o mundo, aprender novas línguas, criar, se tivesse começado a pintar antes quem sabe até curso no exterior e todo esse papo de realização pessoal. Grãos que nunca chegaram a brotar, prova irremediável da minha covardia e pequenez, que me seguram até hoje rebatendo o desejo diário de estar em qualquer outro lugar com a praticidade da burocracia automática do cotidiano. O vermelho vai tomando forma, exceto pelo rosto, ainda pouco definido, um borrão antropomórfico que não se aponta a lugar algum, ocupa o lado esquerdo do quadro como satélite inerte no vácuo. Os anos trazem a certeza de que ela me gosta assim, resilientemente guiada pelo sopro dos seus ventos, sem chão proprio a me agarrar, pipa colorida em suas mãos. 
Pouso o pincel na tinta azul, prestes a esculpir nova figura, interrompida por batidas na porta. Abro, mas ela se mantém próxima ao batente, estendendo na minha direção uma taça de vinho enquanto me olha séria e com uma outra expressão de desapontamento, menos hostil que a primeira. Tenho vontade de chamá-la de todas as coisas terríveis que se acumularam na minha mente no decorrer dos anos, então mordo a bochecha na tentativa de conter o impulso da língua, me limitando a agradecer e pedir que ela saia. Apesar dos esforços, me sobe repulsa ao vê-la assim, esperando que uma mínima gentileza desfaça a estupidez anterior, incapaz de sobrepor a própria teimosia e corrigir seus excessos. Parecia ter uma certeza inerente de como as coisas deveriam ser: eu, acatar e agradecer seu comando como animal perfeitamente adestrado, ela, divinamente escolhida enquanto a detentora da clareza e dos bons caminhos, da efetividade e dos bons resultados, responsável auto-declarada dos pecados alheios. O azul origina um outro corpo, a mesma inércia, na outra metade do quadro. 
Teria dimensão da mágoa que rego sacramente pela sua metamorfose? Dois corpos sem clareza do próprio sentido, incapazes de saberem se estão prestes a colidir ou sendo lançados em sentidos opostos na imensidão sem fim do espaço. Não teria sido possível prever no que se tornaria, antes a maior admiradora do que ela chamava “Meu desprendimento e sede de ser”. Você precisa ir atrás daquilo que te enche a alma, dizia, sem saber que o que me preenchia na época era ela. Foi Camila quem disse que não deveria deixar os desejos dos meus pais firmarem o rumo da minha vida, mas aposto que agora adoraria se eu dissesse que voltei para os trilhos, mudei de ideia, percebi que criar é hobbie e não dá em lugar nenhum, exatamente como eles diziam. O pincel marca sobre a tela o rosto azul encarando o quase-corpo vermelho, tentava alcançá-lo, não por obter direção certeira, mas pela flutuação conjunta, talvez. 
Voltam os barulhos na porta, se não me falha a memória essa é a hora que Camila chegaria com os olhos bem abertos e os lábios cerrados, é nesse momento que ela nutre o ressentimento que sente por mim. Cada uma responsável pela manutenção de seu jardim privado e individual, mutuamente alimentados pelos nossos fracassos. Um passo atrás da porta, olhos caídos e sobrancelha baixa, tinha chorado? Não diz nada. Vem até aqui exclusivamente para me dar oportunidade de pedir perdão, excelência misericordiosa. Silencio na mesma moeda e paro apoiada no batente, encarando-a. Atrás de sua tristeza, um esboço de cumplicidade, conscientes do muro intransponível. Pergunta se tenho algo a dizer, mesmo sabendo que não, e responde ao sinal que faço com a cabeça indo embora. 
Retorno ao retiro em meio às caixas, em três traços, o crânio vermelho torna para o azul. Encaro o redor por algum tempo. faltam acabamentos, mas minha pálpebra luta para se manter aberta, saio do exílio. Normalmente ela está deitada quando chego no quarto, mas a cama está vazia e da sala emana um burburinho de música tocando baixo. Acordo sozinha, como de costume porque ela levanta duas horas antes e sai para o trabalho, mas na mesa da cozinha não tem café, provavelmente ainda estava com raiva. Percorro o caminho até o território invadido, seria melhor se já estivesse trancada quando ela chegasse. 
Nada além das paredes brancas, o chão de madeira e o quadro sob o cavalete. Nas prateleiras, apenas tintas, que seriam facilmente alcançadas, retirada das tropas inimigas. Entro e me sento no banco, caminhando em ziguezagues sem risco de destruir um terreno demolido. 
texto inspirado no desenho da minha amiga talentosíssima Ana Lira <3
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luizaaschiavo · 3 years
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chão branco, limpíssimo, um mar de azulejos cinquenta e oito por cinquenta e oito, evito, sem sucesso, me deparar com os pés que cruzam de um lado a outro do salão, tentando me afogar nesse sem fim de cerâmica encerada. Passam como em parada de qualquer ordem, executando ensaiado desfile: um ou dois por vez afastam-se do grupo onde falam amenidades em tom solene, caminham sem pressa até o outro lado do salão, debruçam-se, aqui, quase sempre, um por vez, sobre a atração central por alguns minutos, erguem-se, enxugam o rosto com as mãos, ou, os mais arrojados, um lenço, e, último ato, voltam com passos igualmente calmos aos da ida. Sem escapar um milímetro sequer do respeitoso e cerimonial, tudo muito sério e honroso, como deveria ser. Não sei se choram por tristeza, raiva ou efeito dominó, o absoluto controle sobre cada movimento denuncia um roteiro para o sentir. Não há sentido algum em nada disso, e não deveria esperar que houvesse, minha irmã me disse, mas mesmo na absoluta ausência de razão é necessário que algo motive todos a agirem conforme estipulado protocolo, eu não tenho nada me motivando, ela também não teria se visse essa merda toda. Estaria ao meu lado, olhando o chão, pensando no que é que leva alguém a pensar no clima ou no Padre Paulo quando dá de cara com sua morte. Os que falavam sobre a razão de estarem ali reunidos não eram melhores, duas ou três pessoas (até agora) se aproximaram para discorrer sobre a efemeridade da vida e o próprio luto, tornando sobre si próprias a ausência de outra pessoa, o que é quase tão feio e muito mais egoísta que a morte em si, deveria poder conviver com esse fato a partir da minha relação com ela. 
Recuperando Fernando Pessoa, morrer é a última coisa que acontece aos outros - eu deveria ir até lá e sair daqui logo, agora. Alguém já começou a caminhar, na próxima.  - natural era que se pensasse em Sandra: isso só vai lhe acontecer uma vez e depois mais nada; mas todos parecem querer apressar resolução e passar inevitavelmente ao esquecimento, que já dá os primeiros sinais em uma indiferença mal escondida, olhares de relance para o relógio e pés batucando, muito discretos, o chão. Provavelmente os assusta pensar nela, eu entendo, apesar do engano que a falta traz, o olfato lembra do cheiro forte de cigarro e a audição dos gritos irascíveis, mesmo que tenha ido de louca à santa em um fechar de olhos. Quase-cartomante, disse muitas vezes no decorrer dos últimos anos que quando se morre de súbito uma enorme empatia brota em todos os âmagos alheios e que quando chegasse sua vez que não lhe fizessem nada, que gastassem todo o afeto enquanto ela pudesse aproveitá-lo. Não fizeram. Agora, desfilavam o comedido luto, que em nada parecia ser dela, o que faz sentido já que agora nada mais era.
Quando a entendi, já estava partindo. Antes disso, por determinação oficial da grande juíza, pouco nos vimos. Tudo o que ela era implicava algum tipo de perda, do prestígio, do renome, o bem-viver, isso era de alguma forma consenso entre os que a cercavam, por isso, passou a maioria dos seus dias em embargo com os mesmos que agora debulhavam sobre seu corpo. Explosiva grosseira descontrolada vagabunda desocupada, tudo evaporou sem deixar rastro assim que o sangue deixou de seguir seu curso. Não tolerava que deliberassem sobre seus passos, tinha uma coragem muito maior que a minha, vivia sozinha e trabalhava estritamente o necessário, crime falimentar. Era feliz, se é que ainda se pode falar em felicidade, parecia ser, por mais que normalmente não sorrisse. Parecia viver em uma espécie de harmonia com o tédio, a raiva, o arrependimento, essas coisas que mastigam a gente um monte por vez. Foram arrancadas antes de nascerem quase todas as lembranças que deveria ter com ela, e as que tenho não condizem com o luto que todos parecem sentir, incluindo a responsável central por ela ter se feito ausente em mim há muito tempo. Os olhos de Adriana, sua irmã e minha mãe, mostram uma âncora em seu peito, sentindo a imortalidade recém-conquistada de todas as mágoas não resolvidas, mesmo tendo dito que quando chegasse o dia “honestamente não lhe faria a menor falta” e tendo desperdiçado quinze anos até perceber, quinze anos que ela também tirou de mim. Fiquei ao seu lado durante os últimos  meses, mas sinto uma coisa tão menor, quase translúcida, que me sufoca feito poeira. Deveria sentir mais, gostaria, não sinto. No centro do meu peito, uma raiva amorfa, dos lados em guerra e de mim mesma por não ter sido capaz de remediar, superar, nem sequer de pesar como deveria. Não tive tempo para ensaiar a dor, apesar da doença tornar a morte iminente, não é cognoscível o tempo das Moiras, toda morte é súbita. 
Preciso entrar na dança revezada e caminhar até o corpo, não sei se deveria, posso chegar e não brotar uma lágrima sequer, o que certamente será lido como desrespeitoso ou fora do estipulado. Apesar do estipulado não ter sentido nenhum, a exposição seguida por repreensão certeira não vale o risco. Quero roubar toda a dor acumulada nessa sala, furtá-la e realizar todos os testes laboratoriais possíveis: primeiro porque assim descobriria se de fato sentem tudo o que choram ou se parte é apenas uma espécie de cortesia exibicionista; segundo porque assim também teria lamúrias para integrar ao ritual coletivo. Quando morrer, quero os meus órgãos doados e tudo que resta reduzido a cinza, sem que toda a vida seja digerida pelos vermes do começo ao fim, devorada de fora para dentro onde ninguém vê nem sente. Vou até lá. Não, perdi a vez, na próxima.
As luzes, frias, fortes, simetricamente espalhadas pelo teto, os olhares de pena e os choros sentidos me empurram cada vez mais para a quina do salão, como se ordenassem saída. Nada na próxima nada na próxima nada. Os pés batendo contra o chão frio agora são os meus, esse desespero também é meu, a indiferença também, e eles correm devagar, quase sem mover, nas artérias, pingando ardido no coração, medicação intravenosa. Anda logo anda logo anda logo a cabeça grita, mas não obedeço. A porta convida e meus pés quase instintivamente aceitam, movendo-se automáticos, contornando o quanto possível a quadrilha em andamento para lá e pra cá, focada sempre no próximo azulejo, cabeça baixa e ouvido atento a qualquer sinal de movimento em raio próximo. Me movo tentando existir onde ninguém vê, comendo pelas beiradas dos que me cercam seus próximos movimentos para garantir que os meus não destoem e, sem incomodar, chegue ao lado de fora da porta, cada vez mais visível, prometendo um melhor existir. Ela tinha uma coragem muito maior que a minha. 
Não tinha vivido pelas bordas, parasitando conveniências e gestos apropriados, nem quando estava em vias de despencar de vez pra fora da existência. Mesmo após o diagnóstico, não abriu mão dos amores, dos bares, dos cigarros, drinks, encontros e folias até que seu próprio corpo a impedisse, o que enlouquecia minha mãe. Adriana não ia visitá-la, mas desde que descobriu que eu tinha contato com ela parecia esperar em todas as conversas alguma atualização, se eu não dava, me perguntava, disfarçando a curiosidade com expressão de desgosto. Chamava-a irresponsável, egoísta, até suicida, sem perceber que, apesar de seus esforços, a preocupação transparecia na raiva. Era muito mais como eu: não tinha sequer a coragem de desgarrar a mágoa e ver por debaixo dessa camada espessa com a qual vinha cobrindo-sí. E nunca pisava um milímetro fora do ensaiado, escondendo com graça o treino e esforço necessários. 
Branco, branco, branco, sapatos pretos de fivela dourada colidem contra os meus, são os mesmos que usava para ir à igreja aos domingos e que encarei mil vezes por ter medo de dizer que não queria ir. Nos olhamos, Adriana e eu temos a mesma sobrancelha erguida e olhos arregalados, que garantem uma fixa expressão de susto. Ela se recupera mais rápido do imprevisto, volta a serenidade bucólica de antes e toma meu braço, dando a entender que vamos juntas até o caixão. Vou. Ela arranha disfarçada a bolsa, enquanto arranho meus dedos sem que ela veja; ela olha para os lados, para todos, enquanto olho para o chão e para seus braços; caminhamos em direção àquilo que não nos arriscamos a ver. A caminhada parece eterna, cada passo uma bigorna a mais amarrada aos meus tornozelos, pelo medo de ver seu corpo sem ela o preenchendo, pelo medo disso não ser o suficiente, pela covardia de não seguir os conselhos que ela me daria e sair rodando daquele salão. Uma culpa me devora de dentro pra fora, um pouco por dia, agora Sandra era um dos nomes desse parasita. Ela detestaria ser colocada embaixo do solo, detestaria ser enterrada na sepultura familiar e faria piadas sobre não querer a eternidade ouvindo bobagens no além. Tenho a impressão que gostaria de evaporar, subir pelos ares até desintegrar a milhões de metros de altitude, como se fosse borboleta e depois virasse fumaça. Um passo decisivo revela nariz, boca, parte do tronco, opacos e mais amarelados do que nunca, absolutamente imóvel, congelo. Adriana puxa meu braço como se eu fosse teimoso animal de carga, indócil, atrapalhando o ritmo das despedidas. Levanto o rosto e olhos de todas as partes, lacrimejantes, entediados, vazios, sonolentos, assustados parecem se procurar em mim. Não encontrariam nada. Adriana diz algo que não escuto e aponta para mim os olhos cerrados, puxa sem muita força meu braço enquanto com a mão espalmada no centro das minhas costas tenta me conduzir a seguir a dança, mas meu corpo não obedece. 
Súbito, escapo dessa valsa e caminho em marcha para além da porta. Penso em Adriana me vendo caminhar para longe, o que pensava, se sentia vergonha e raiva, que justificativa daria aos outros. Tenho vontade de voltar, mas seria pior e poderia levar ao chão qualquer suposto compromisso que ela possa ter inventado para explicar minha saída. Sinto o ar áspero e o chão parece tentar esquivar dos meus pés, que se movem cada vez mais rápido. Na lateral da avenida, suspeito que olhares desconhecidos me acusem, possam ver as bolas de ferro que arrasto a cada passo e chiam ardido no concreto. Procuro mergulhar o quanto posso em cada rápido encontro, verificando se percebo em todos a vida indo embora, sendo digerida gradativamente pelos vermes que se alojam e reproduzem no peito e circulam pelas veias. Quantas vezes tinham executado o mesmo movimento, para lá e pra cá da avenida, de um lugar a outro, nos espaços predestinados, devorando e sendo devorados por Cronos até quê. Entro em qualquer ônibus, sento o mais imóvel o quanto posso, olhando o cardume de carros que se desloca, solitários. Quatro ou cinco borboletas, asas brancas, cruzam a janela, vindo não sei de onde, ultrapassam a altura do ônibus, superando a copa das árvores até que se misturem a alvura das nuvens. 
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luizaaschiavo · 3 years
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Enquanto ela, sentada no sofá pequeno e amarelado, bordava no bastidor um buquê de magnólias e gardênias, ele a devorava com os olhos, mesclados em admiração e repulsa. Ela movia com agilidade a agulha, como se fosse incapaz de furar-lhe os dedos, a cada movimento da linha bege adicionava contornos, pétalas e dobras à imagem que gradativamente ganhava singularidade. Ele mantinha o máximo de distância que podia, o que não era mais do que cinco passos. Estavam na sala-cozinha daquele apartamento de setenta metros quadrados, que encolhia todos os dias um metro a mais. Quanto menor ficava, menos ela percebia a presença dele, invisível se não por um pigarro que a enojava e pelos pés pesados, que ela jurava que iriam atravessar o chão e fazê-los, ambos, caírem do décimo primeiro andar, destruindo todos os lares que estavam no caminho até o subsolo. Gostava quando conseguia esquecer, mesmo que por um segundo, que moravam na mesma casa, nesse fragmento de amnésia residia toda a tranquilidade e espaço para ser.
Ele olhava para ela enquanto lia o jornal, o incomodava a serenidade catatônica com que ela performava a própria existência. Nos olhos dele, ela já não parecia sentir tesão algum pelo viver, não dava lambidinhas na borda do copo quando bebiam juntos, não colocava o cabelo atrás das orelhas enquanto lia, não sorria com o mesmo gosto ao provar o café feito especialmente por ele todos os dias de manhã. Transitava pelos cômodos sem dizer coisa alguma, exceto pelo ocasional olhar de repreensão quanto a forma bruta e equivocada com que ele realizava ações cotidianas. Achava-a absolutamente entediante, mas havia desenvolvido particular obsessão na forma como ela o desprezava.
— Sabe, estive pensando num passarinho que tive quando criança. Já te contei dele?
Sem tirar os olhos do bastidor, ela fez que sim com a cabeça e atravessou o algodão com a agulha mais uma vez, contornava uma das pétalas de gardênia e fazia pequenos zigue-zagues para construir a perfeita irregularidade das bordas.
— Acho que está enganada, nunca te contei. Quando tinha nove anos ganhei do meu avô um Sanhaço Azul, conhece esse tipo de pássaro? É pequeno, tem um azul mais claro na parte da barriga e mais escuro nas asas, é um dos passarinhos mais bonitos que já vi.
Não conhecia, mas pensou poder convencê-lo a encerrar por ali o assunto, sequer tentava lembrar-se de ter ou não escutado aquela história. Já tinha ouvido muitas histórias sobre a vida de Antônio, com o tempo todas haviam se juntado em um novelo de narrativas que se sobrepunham e iam lentamente desfiando em sua memória. Sem interromper o movimento serpentino dos pulsos ela levantou o queixo na direção dele e murmurou:
— Conheço sim, lembro de quando você me contou.
— Você não lembra, Bárbara. Nunca ouviu. O fato é que eu tinha acabado de ganhar um Sanhaço Azul, devia ser março, porque ganhei de aniversário e os dias estavam quentes. Nos primeiros dias ele cantava sempre nos mesmos horários, era um canto tranquilo, sabe? Gostava de ouvir ele cantar, fazia as tarefas ao lado da gaiola para ficar admirando. Com o tempo, fui gostando tanto mais que fazia tudo o que podia ao lado da gaiola, que não era grande, então conseguia deslocá-la com facilidade caso quisesse que ele me fizesse companhia na sala, ou no meu quarto. Gostava da companhia dele, entende? Mas com o tempo ele não gostava mais da minha. Podia ver nos olhos minúsculos e vazios dele o desdém, de dentro de sua gaiola não via meus olhares afetuosos, o sorriso ao ouvir seu canto ou o zelo com que eu mantinha sua segurança. Será que me via assustador? Um gigante a observá-lo, monitorá-lo, decorando os horários de cada um de seus cantos.
Ela agora fazia movimentos mais longos com a linha marrom, construía com cerimônia o início de um caule. Oscilava o olhar entre o tecido e os pés de Antônio, verificando que ele ainda segurava o jornal. O interrompeu:
— É importante ter um animal na infância, companhia, né? Tenho certeza que ele gostava de você. Boa história.
— Se ele gostasse as coisas teriam ocorrido de outra forma, não acha? Ou está dizendo que eu fui o culpado? Sabia que você não tinha ouvido essa história ainda, está vendo? Não sabe do que fala. De qualquer forma, o sanhaço já não gostava mais de mim. A pior parte não eram seus olhos: conforme passaram as semanas, seu canto, antes sereno, tornou-se uma cacofonia de sua angústia estridente e desatinada. Já não sabia mais o que fazer, porque comecei a gostar de ver o sanhaço voando de ponta a outra da gaiola, cantando esganiçado até que cansasse e repousasse atônito sobre uma fina barra de aço. Ouvi-lo no entanto, como você deve imaginar, era insuportável. Meu desejo era mutar a cena, vê-lo voar naquela pequena porção de ar que lhe havia sido reservada para toda sua curta existência. Se o que dizem sobre “não se poder guardar o voo de um pássaro” for verdade, posso dizer que desempenho milagres desde a infância. Aquele passarinho com os tons do céu, com suas asas bonitas, mesmo que pequenas enquanto ele voava, e seu miúdo bico eram uma existência inteira sob minha observação. Toda a debilidade e inocência do seu pequeno existir estavam a cargo dos meus cuidados. Mas o imenso apreço que sentia pelo sanhaço não era o bastante para tornar tolerável a agudeza sofrida de seu canto, não restava o que fazer. Em uma noite ele estava no ápice de seu brado infernal, sem me deixar dormir, então fui até o quintal e peguei cinco pedrinhas: pequenas o bastante para atravessarem sem problema todo o organismo do pequeno pássaro, exceto por suas cordas vocais. Misturei em sua comida e me deitei novamente para dormir, esperando a ingenuidade do pobre bicho resolver a situação. Quando acordei, vi o passarinho em seu ânimo-angústia cotidiano, voando nos tão familiares 50 cm³ de ar, esgoelava-se mas saia apenas um som rouco e baixo. Ele viveu muito tempo ao meu lado depois disso, morreu apenas aos quatro anos, fez-me boa companhia e acho que conseguiu entender quando ficou mais velho que eu lhe era uma boa companhia também, que estaria sempre vigiando por seu bem estar.
As mãos dela moviam-se ainda mais rápidas do que antes, os olhos compenetrados no algodão, contornava os últimos detalhes. Ele aguardou qualquer resposta que nunca chegou. Ela temia olhar para ele e confrontar-se com uma besta hedionda, desprezava o desalinhamento de seu bigode e o jeito que lambia os lábios depois de falar, odiava seus fundamentos, valores e ideais. Se irritava com o jeito que preparava seu banho sempre da mesma forma, que cozinhava sempre os mesmos pratos sem gosto e que vestia a mesma camisa marrom-alaranjada toda segunda-feira. Lembrava de quando o via charmoso, moderno, politizado e culto; sabia que o homem que encontraria se erguesse o rosto seria apenas um retrato da mediocridade e das muitas coisas que não foram; sabia que teria nojo do resto de molho no canto da sua boca e não teria o mínimo ímpeto em avisá-lo. Gostaria de nunca mais vê-lo, não queria sequer dar-lhe o gosto do divórcio, pois exigiria muita negociação burocrática e longas reuniões onde ambos teriam que entrar em alguma espécie de diálogo. Barbara desejava que, de um dia para o outro, ele evaporasse. Não ouvir mais seus sapatos batendo contra o chão de madeira, não tolerar a forma como lambia seus dedos para virar as folhas do jornal e nem encontrar seus objetos prepotentemente espalhados pela casa. Quis que ele morresse e se deu conta disso.
A agulha caiu de seus dedos e, por reflexo, ela ergueu os olhos para ver se ele havia percebido. Ele não havia tirado os olhos dela sequer por um segundo e fitava como se os pensamentos dela fossem enviados a ele antes de chegarem a sua mente. Ela se encolheu, tão pequena quanto inseto, deixou-o examiná-la enquanto olhava para baixo, torcendo para que ele não soubesse no que havia lhe cruzado a mente.
— Bom, eu vou me deitar, Bárbara. Você já não ouve mais nada do que eu digo, não se importa com a minha vida e nem comigo, não parece se importar sequer com as memórias da minha infância, que guardo em um espaço tão íntimo.
Ela balançou a cabeça em negação e articulou serena e silenciosa:
— Triste você ter tomado decisões tão difíceis, fico feliz que com o tempo vocês tenham passado a gostar novamente da companhia um do outro.
Nesse momento ele já não estava mais olhando para ela, recolhia as coisas que levaria para o quarto. Não respondeu, apenas a olhou e adentrou o pequeno corredor. Barbara colheu a agulha do colo e voltou a cruzar o algodão, concentrava-se em esquecer por absoluto que Antônio estava no cômodo ao lado e tudo aquilo que ela detestava, mas não conseguia. Por isso, lhe custou muito adormecer e terminou por descansar breves horas em cima do bastidor, onde havia, agora, começado a construir a imagem de uma garça. Pela manhã, quando acordou, não sentiu o cheiro queimado e amargo do café de Antônio, com o qual já havia se acostumado mesmo sem nunca aprender a gostar. Passou seu próprio café e começou a aproveitar o sono demorado dele, olhando pela janela: entretinha-se com a existência alheia, concatenando histórias sobre as cenas de cotidiano que via dentro dos outros apartamentos. Percebeu, contudo, que a serenidade durava tempo demais, passou alguns minutos contemplando a decisão de acordá-lo ou não. Quase metade de hora mais tarde, decidiu ir até o quarto, pois já beirava o meio dia e, caso o deixasse dormir muito mais, ele se sentiria frustrado e até traído, como se ela rompesse o acordo de garantir-lhe o bem-viver.
Abriu a porta e rapidamente percebeu, Antônio não acordaria. Toda a culpa que há no mundo invadiu seu âmago em um rasante, temia que sua autópsia declarasse que a causa da morte foi a maldição lançada sobre ele na noite anterior. Temia a si mesma e àquilo que cruzava seu pensamento, observava tudo em que pensava como quem encara os olhos da Medusa na tentativa de petrificar. Tinha certeza que os vizinhos a apontariam como suspeita do crime, que a polícia investigaria cada canto até encontrar dentro dela a memória da praga lançada.
Desceu onze lances de escada, tentando evitar a angústia de aguardar estática no elevador sua fatídica punição, abriu a porta do prédio delicadamente para evitar qualquer suspeita e começou a caminhar. Conseguia ver o apartamento sendo gradativamente preenchido com o cheiro da podridão até que não coubesse mais nos setenta metros quadrados e começasse a vazar pelas rachaduras, invadindo outros apartamentos, outros andares e, finalmente, toda a rua teria o cheiro do cadáver de Antônio sendo devorado pelo tempo e pelo esquecimento. Enquanto cruzava a rua atormentada por seu crime, como se ele ainda a vigiasse e pudesse puni-la caso não fornecesse alguma dignidade ao seu óbito, decidiu chamar assistência médica. Antes que tivesse tempo, um feixe iluminado branco e vermelho veio em sua direção. Depois, mais nada.
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