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Ritmo em The Many Deaths of Laila Starr
Nas minhas leituras mais recentes, eu tenho prestado uma atenção especial nas diversas técnicas empregadas pelos artistas de quadrinhos para criar ritmo na página. Na página a seguir, retirada da edição #2 de The Many Deaths of Laila Starr, Ram V e Filipe Andrade combinam dois ou três artifícios para criar um mood bastante específico nessa história fenomenal sobre a morte, o luto e a condição humana.
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A página é composta em três linhas. A primeira delas, com três quadros, mostra os dois personagens centrais da cena, o corvo e Laila Starr/Deusa da Morte, que se conheceram momentos atrás. O primeiro quadro não tem texto e mostra, simplesmente, o corvo pulando no ombro de Laila (movimento simbolizado pela discreta linha de ação à esquerda no quadro). É uma imagem simples, mas levamos algum tempo na sua "leitura", absorvendo, ainda que brevemente, o movimento da ave na direção de Laila. O segundo quadro, com boa parte do texto da página, mostra o corvo propondo a Laila uma visita a um funeral. Aqui, o texto é o elemento central, e a tendência é ficarmos no quadro apenas o tempo necessário para a sua leitura: a imagem traz apenas uma sequência lógica e natural do momento anterior. O terceiro e último quadro tem em comum com o primeiro a ausência de texto, mas aqui o silêncio tem outro significado: enquanto, no primeiro quadro, o silêncio tinha a função de não tirar nossa atenção do foco da imagem -- o movimento do corvo na direção de Laila -- aqui o silêncio representa a reflexão de Laila sobre a proposta feita pelo corvo momentos atrás.
A segunda linha, também com três quadros, mostra cenas urbanas comuns ao cotidiano de qualquer cidade grande como Mumbai, onde a história se passa: alguém acompanhando o movimento da cidade enquanto espera seu pedido em um quiosque, um rapaz pegando carona em um trem, um casal de namorados contemplando o oceano Índico enquanto um cachorro de rua persegue um grupo de pássaros. A função dessas imagens é criar um clima específico, um sentimento de normalidade da vida, de poesia do cotidiano, que tem o efeito duplo de representar o tempo gasto por Laila para avaliar o convite do corvo na linha anterior, e de apresentar aos leitores diferentes aspectos da cena em questão -- não por outro motivo, Scott McCloud batizou esse tipo de transição de aspect-to-aspect em seu fundamental Understanding Comics:
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Na terceira e última linha, com apenas um quadro, temos uma Laila com uma expressão meditativa e algo resignada, aceitando o convite do corvo. É uma imagem ampla, em "widescreen", que dá uma certa grandiosidade ao momento. Até o letreiramento contribui para o ritmo: percebam o uso de dois balões, criando uma certa cadência no texto; o efeito seria totalmente diferente se as expressões "yeah" e "why not?" estivessem em um único balão. Essa bela imagem conclui uma verdadeira aula de ritmo nos quadrinhos, cortesia de Ram V e Filipe Andrade, nesta página impecável, como tantas outras de The Many Deaths of Laila Starr.
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Criminal
O uso do tamanho dos quadros para cadenciar a leitura e transmitir ao leitor a sensação de blocos de tempo distintos é uma das artes sutis envolvidas na criação do leiaute de uma página de quadrinhos. Um artista como Sean Phillips domina essa técnica à perfeição, como demonstrado na página abaixo, retirada de Criminal #9 (2019), com roteiro de Ed Brubaker e cores de Jacob Phillips (filho de Sean):
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Ao lermos uma página de quadrinhos, temos a tendência de nos deter por mais tempo em quadros maiores. Além de indicar a importância relativa daquele segmento dentro da cena, o tamanho do quadro determina, em certa medida, o tempo que vamos "gastar" nele, e essa é uma das formas usadas pelos artistas para simular a passagem do tempo na narrativa.
Na página acima, na primeira linha temos três quadros, com os três personagens envolvidos na cena: os delinquentes juvenis Leo e Ricky, dois dos protagonistas do universo de Criminal, nos quadros 1 e 3, com um guarda de segurança no quadro central. Os quadros com os protagonistas são maiores do que o quadro do guarda, o que indica a importância relativa dos adolescentes em relação ao segurança, um coadjuvante na cena. O quadro central menor também representa o tempo menor em que nos detemos nessa tomada específica (emprestando o termo da linguagem cinematográfica): se estivéssemos assistindo a um filme, as tomadas com os dois adolescentes durariam um tempo um pouco maior em relação à tomada com o guarda.
Na segunda linha, temos dois quadros grandes, de tamanho similar, ocupando o centro da página e da ação: Ricky e o guarda se enfrentam, com evidente desvantagem para o primeiro. O fundo vermelho do quadro da esquerda simboliza o caráter violento da cena; não é um absurdo imaginar que esses dois quadros foram concebidos como uma espécie de câmera lenta, efeito ressaltado pelas cartunescas linhas de "dor" no ombro de Ricky no quadro 1 e pelo rastro de sangue que sai do seu nariz no quadro 2.
Na terceira e última linha da página, temos quatro quadros: a ação se acelera, especialmente nos quadros 1 e 2, que formam um díptico (técnica artística utilizada em painéis desde a antiguidade). Dípticos (duas imagens) e trípticos (três imagens) são os exemplos mais comuns de polípticos, técnica em que os artistas compõem uma obra a partir da articulação de duas ou mais imagens:
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(Hans Memling, Donne, 1480)
Nos quadrinhos, os polípticos funcionam como as panorâmicas do cinema (em inglês, panning): o artista guia nossos olhos, normalmente da esquerda para a direita, com um bônus que só os quadrinhos podem proporcionar: cada quadro consegue isolar o elemento que o artista quer destacar naquela cena.
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No exemplo de Criminal, os quadros 1 e 2 da terceira linha formam uma unidade de imagem, mas a divisão em dois quadros distintos, primeiro, concentra nossa atenção no confronto entre Ricky e o guarda (continuando a sequência da linha central da página), e depois desvia nosso olhar para Leo, cuja reação é o coração da cena.
Os quatro quadros que compõem a terceira linha vão ficando cada vez mais estreitos -- em outras palavras, o tempo vai se encolhendo, ao mesmo tempo em que a "câmera" faz uma transição de um plano aberto (os três personagens inseridos no cenário em que a cena acontece) para closes no rosto de Leo e na arma no chão. Esses dois últimos quadros, os mais estreitos da página, devem ser lidos de forma "rápida", pois a ideia é de uma edição veloz, representando a velocidade da reação de Leo ao perceber a arma no chão e ao tomar a decisão de pegá-la.
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Finalmente, é notável como a página organiza a cena na forma clássica introdução - desenvolvimento - conclusão: a primeira linha apresenta os personagens, a segunda traz o centro da ação, e a terceira conclui a cena com a decisão de Leo de pegar a arma, fazendo a ação avançar para a página seguinte. Perfeição.
Cruel Summer, o arco final do universo de Criminal, de onde essa página foi retirada, é apenas mais uma das muitas obras-primas da dupla Brubaker & Phillips, uma das parcerias mais bem-sucedidas da história dos quadrinhos.
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Sleeper, Season Two
Sleeper é um dos muitos frutos da fecunda e bem-sucedida parceria entre o escritor Ed Brubaker e o artista Sean Phillips. Ambientada no universo Wildstorm (mas com o qual tem pouca coisa em comum, além do uso de alguns personagens do selo da DC), a saga completa inclui as séries Point Blank (cinco edições), Sleeper (12 edições) e Sleeper: Season Two (12 edições), publicadas entre 2002 e 2005.
Tanto a escrita de Brubaker quanto a arte de Phillips buscam muita inspiração no cinema, particularmente no film noir e nos thrillers de ação. A sequência a seguir, retirara de Sleeper: Season Two #2, é um claro exemplo dessa influência.
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O layout de Phillips é preciso, ágil, e conduz nossos olhos através da página com extrema fluidez. A escolha dos enquadramentos, que alterna entre planos abertos, médios e fechados, simula a edição alucinante de um filme de ação. Brubaker, acertadamente, opta por uma página sem qualquer tipo de texto, com exceção de uma única onomatopeia no quadro em que dois veículos colidem. No final da sequência, temos, como cereja do bolo, uma brusca alteração de ponto de vista: até então, a câmera era impessoal, mostrando a cena de forma objetiva; aqui, no último quadro, temos o ponto de vista do personagem Holden Carver, que passa a ser perseguido a pé pelos policiais. A cena é preparada pela cuidadosa escolha da câmera no penúltimo quadro, que mostra Carver olhando por sobre o ombro, justamente na direção do último quadro, em uma clara indicação de que, ali, estamos vendo o que ele vê. A leve inclinação deste e de outros quadros em relação ao plano horizontal acrescenta movimento a toda a cena de uma forma discreta e sutil.
Brubaker e Phillips são uma das duplas mais consistentes dos quadrinhos contemporâneos, e Sleeper está repleta de exemplos da genialidade desses dois grandes artistas do meio.
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Wolverine: Red, White & Blood
A Marvel andou publicando, nos últimos anos, uma série de revistas na linha “Red, White & Blood”, com títulos dedicados a Deadpool, Elektra e outros personagens. Como o nome indica, são histórias ilustradas em três cores (branco, preto e vermelho), cada revista com três histórias independentes da continuidade da editora, invariavelmente violentas e com sangue à vontade.
Fã dos mutantes que sou, acompanhei, em 2021, as edições dedicadas ao Wolverine. A edição #3 traz um recurso técnico bastante interessante na terceira história, “Red Planet Blues”, escrita por Jed MacKay e desenhada por Jesús Saiz.
Resumo do enredo: teletransportado por Magik (a história se passa antes de Krakoa e seus gates), Wolverine vai a Marte para frustrar os planos de alguns dissidentes da organização criminosa A.I.M, que pretendem criar uma base no planeta vermelho. O herói é emboscado por um robô assassino controlado pelos bandidos, e tem os olhos destruídos por uma rajada de energia emitida pelos olhos do robô.
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A cegueira, somada ao fato de que o robô conta com dispositivos de camuflagem que mascaram seus sons e seus cheiros, tornam a máquina assassina indetectável. Wolverine não pode usar seus sentidos superapurados para localizar e combater o robô, o qual tem o mutante, portanto, à sua mercê.
É aqui que MacKay e Saiz usam um artifício engenhoso para nos mostrar como Wolverine saiu desse apuro:
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Como todo bom vilão, os desta história são tagarelas, e acabam morrendo pela boca: em constante movimento, no exato momento em que percebe que não consegue mais ouvir o discurso dos bandidos, Wolverine deduz a posição do robô e consegue finalmente neutralizá-lo.
Em termos de enredo, é uma saída boba, mas o que nos interessa aqui é a execução técnica da ideia. Temos o ponto de vista de Wolverine, que, lembremos, está cego naquele momento. A obstrução dos balões na imagem representa a interrupção do som para o mutante. Um efeito sonoro, no enredo, é traduzido brilhantemente em termos visuais para os leitores, utilizando um dos elementos básicos da nona arte (o balão) para atingir um efeito de uma forma possível somente neste meio -- uma demonstração clara do domínio técnico dos criadores da história.
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Little Monsters
Lendo a décima segunda edição de Little Monsters, a ótima série de Jeff Lemire que conta a história de um grupo de crianças vampiras em um cenario pós-apocalíptico, um close do personagem Lucas me remeteu imediatamente a Picasso e ao cubismo:
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As linhas do artista Dustin Nguyen beiram a total abstração. Duas ou três linhas formam o nariz, e o mesmo vale pros olhos, pra boca, pro queixo. O volume no desenho é resultado da aplicação de halftone, que cria o efeito do sombreado na metade esquerda do rosto de Lucas. Ainda que seja uma imagem simples, composta por alguns riscos, áreas negras e dois tons de cinza, Nguyen consegue transmitir perfeitamente a seriedade e o tom de leve ameaça contido nos balões com o texto de Lemire.
Aceitamos essa imagem, hoje em dia, com muita naturalidade. Eu mesmo só fui atentar pro grau de abstração da arte de Little Monsters agora, na edição #12. Mas isso nem sempre foi assim. Quando o cubismo surgiu, no comecinho do século 20 na Europa, os apreciadores da arte ficaram chocados com os quadros revolucionários pintados por Picasso, Braque e outros artistas. A arte de Little Monsters seria tão esquisita quanto o quadro “Les demoiselles d’Avignon”, de Picasso, para as pessoas que viram a obra pela primeira vez em 1907:
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Assim como a imagem da Feiticeira Escarlate em Empyre: X-Men conversava com um quadro de Fragonard (como discuti em um post anterior), o desenho de Nguyen é herdeiro direto do cubismo, um movimento artístico que expandiu violentamente os horizontes da nossa percepção estética. É interessante constatar que as conquistas do cubismo e de outros movimentos do período transformaram radicalmente nossa apreciação não apenas das artes plásticas tradicionais, mas também da nossa querida nona arte.
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Mazebook
A nova série escrita e ilustrada por Jeff Lemire, Mazebook, já nasce com a promessa de se tornar uma belíssima história de luto e redenção. O estilo expressionista de Lemire se encaixou perfeitamente (o que já havia acontecido em Sweet Tooth) nessa trama sobre um pai lidando com a perda da filha de 11 anos.
É uma obra pesada, densa, com textos precisos e cores sóbrias na maior parte do tempo. A monotonia da vida do protagonista, com suas cenas repetidas e cores pálidas, é quebrada apenas pela lembrança da filha, em que o vermelho assume um simbolismo multifacetado.
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O conceito de linha (ou fio) também merece destaque: os fios que formam o suéter favorito da filha, a linha da vida nas mãos, a linha da vida nos aparelhos hospitalares, as linhas que compõem os labirintos (passatempo favorita da filha), o fio da memória (com origem na mitologia grega, em que o fio de Ariadne, de lã vermelha, ajudou Perseu a enfrentar o Minotauro em seu labirinto), os tubos que injetam sangue nas veias da filha na capa da segunda edição, as linhas dos desenhos que tornam a própria história possível. 
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É uma edição #1 incrivelmente promissora, cuja última cena aponta pro mistério que sustentará o restante da narrativa. Pequena obra-prima de Jeff Lemire, um autor que só melhora a cada lançamento. Grandes esperanças para o restante de Mazebook.
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As letras nos quadrinhos
Talvez o aspecto mais negligenciado das histórias em quadrinhos sejam o letreiramento (lettering, em inglês). Sabemos que as palavras são fundamentais pras HQs, mas não damos muita bola pra artesania envolvida no posicionamento dos balões, no desenho das letras, nas muitas vezes sutis escolhas envolvidas, por exemplo, na cor de fundo de um recordatório, e por aí vai.
Dave Gibbons, em seu livro How Comics Work, afirma que o letreiramento é como a trilha sonora dos filmes: se você percebe que ela existe, provavelmente algo está errado. É uma arte invisível, mas importante ao ponto de conseguir arruinar uma história, não importa quão lindos sejam os desenhos ou quão magnífico seja o texto.
Trago abaixo duas páginas de Thor #360 (1985), história escrita e desenhada por Walt Simonson, com letras de John Workman Jr. 
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Percebam como o posicionamento dos balões nunca briga com as imagens: eles são sempre posicionados discretamente no topo, no fundo ou nas laterais dos quadros. Outra coisa que chama a atenção é como esse posicionamento torna a leitura fácil, confortável, natural e sem esforço. Levando em conta o "método Marvel", vou trabalhar com a pressuposição de que Simonson ficou responsável pelo posicionamento final dos balões, já que ele escreveu e desenhou a história. É bem provável que Workman tenha apenas "passado a limpo" as letras de Simonson já no balão pronto.
Mesmo quando o artista usa um truque como o do balão marcado com azul, nossa atenção não é desviada. É um recurso tão sutil que, sem perceber, invertemos a ordem natural (da esquerda para a direita) de "leitura" das imagens neste quadro específico: por conta do posicionamento da fala do Executor, nossos olhos são atraídos pra ele, depois pra mão da Amora, pro rosto dela e, finalmente, pros balões de texto na extrema esquerda, os quais, normalmente, seriam os primeiros a serem lidos. O posicionamento engenhoso de um pequeno balão nos levou a ler todo um quadro na ordem inversa da qual estamos acostumados. Isso sem mencionar a sutileza de conseguir posicionar, lado a lado no quadro, as palavras "My feet!" e o pé do Executor, que é justamente a imagem focal da página.
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Na página acima, da mesma forma, o fluxo de leitura das imagens é amparado pelos balões, especialmente na imagem central da página, o close no rosto de Frigga. O posicionamento do balão no canto inferior esquerdo do quadro central, em conjunto com o balão seguinte, no canto superior direito, orienta nossos olhos numa diagonal ascendente, criando um efeito respeitoso, como se víssemos Frigga de uma posição inferior, o que condiz com a posição da personagem na história (ela é a regente provisória de Asgard naquele momento) e é realçado no quadro seguinte, em que Thor se ajoelha diante dela.
São duas páginas que mostram muito bem a arte sutil do letreiramento e a importância que o posicionamento dos balões tem para o sucesso ou o fracasso de uma história em quadrinhos.
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Calvin e Haroldo
As tiras de jornal (em inglês, comic strips) estão para os quadrinhos como os haikais estão para a literatura: em ambos os casos, temos formas de expressão artística que habitam no limite do minimalismo, com regras relativamente rígidas de composição, e com aparentemente pouquíssimo espaço pra inovação.
Uma tira é tradicionalmente composta por três ou quatro quadros, nos quais os cartunistas buscam contar uma história completa com a maior economia possível de palavras e traços. Artistas como Charles Schulz (Peanuts), Jim Davis (Garfield) e Scott Adams (Dilbert) estão entre os cartunistas mais bem-sucedidos dos quadrinhos, com criações imortais que são lidas há décadas por milhões de pessoas em todo o mundo.
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Meu cartunista favorito é Bill Watterson, criador de Calvin e Haroldo (Calvin and Hobbes, em inglês). Um dos traços que mais me agrada em Waterson é a constante busca pelos limites criativos da tira, especialmente nas tiras de domingo, que, além da possibilidade de serem coloridas, permitiam, para os artistas mais populares (e que, por isso, dispunham de mais espaço), extrapolar as restrições dos 3-4 quadros das edições de meio de semana.
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A "tira" acima é um exemplo dos experimentos que Watterson gostava de praticar nesse meio desafiador pra alguém que busca constantemente a inovação. Coloquei "tira" entre parênteses porque, a rigor, não se trata de uma tira ou uma história em quadrinhos (por definição, uma história com pelo menos dois quadros), mas de uma única imagem, o que qualificaria a peça como um cartum (desses que vemos em revistas como a New Yorker, em que temos apenas uma imagem, normalmente mostrando uma situação humorística, com ou sem legendas).
O que Watterson faz pra contornar essa questão é utilizar um elemento do próprio desenho – no caso, as árvores – como os separadores entre os quadros (chamados de gutters em inglês), conseguindo uma fluidez que se harmoniza com a cena retratada: Calvin e Haroldo passeando de carrinho por um bosque no verão. Na edição de domingo, em um espaço em que os cartunistas (Watterson inclusive) aproveitam pra publicar histórias com pelo menos 8 quadros, ele resolve explorar os limites do meio e conter a história em apenas uma imagem. Ousado, pra dizer o mínimo.
O texto não fica atrás. À esquerda, Haroldo diz: "Pois é, o verão está quase no fim. Passou rápido demais, né?", e Calvin responde: "É.". No centro, temos os dois em silêncio, e à direita, enquanto eles somem no horizonte, Calvin conclui: "Nunca sobra tempo pra fazer todo o nada que a gente quer." (numa tradução bem livre). É uma tira sobre o "nada", representado aqui por aquela tristeza que bate no fim das férias e com a iminente volta às aulas/trabalho  – um nada que ao mesmo tempo é "tudo", a liberdade de brincar, de não fazer nada "útil", de "perder tempo" (alguém já disse que "não é tempo perdido o tempo que a gente gosta de perder"). A imagem central, sem texto (um quadro sem texto é algo raro nas tiras de jornal), de certa forma simboliza esse "nada": Calvin evita estragar com palavras o prazer desse passeio pelo bosque, com seu melhor amigo, nos últimos dias do verão.
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Nas comparações que vemos por aí entre os quadrinhos e o cinema, aprendemos que os filmes se apoiam na sucessão rápida de imagens, geralmente em um ritmo de 24 quadros por segundo, para representar e simular o movimento. Nos quadrinhos, a sensação do movimento se dá de uma forma muito mais sutil, apoiada em recursos e convenções utilizadas pelos artistas da nona arte.
Uma dessas convenções é o sentido da leitura (da esquerda para a direita nos quadrinhos ocidentais, da direita para a esquerda nos mangás, e de cima para baixo em ambos os casos). Um criador experimentado vai se utilizar dessa convenção para "empurrar" seus personagens em determinadas direções e guiar nossos olhos pela página de forma natural, intensificando o efeito de movimento que se pretende atingir na história.
Vejamos, por exemplo, como Walt Simonson utiliza esses conceitos em uma página da sua clássica passagem pela revista Thor (edição #351, de janeiro de 1985):
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Percebam como a trajetória de Thor pela página é harmonizada com o posicionamento dos balões de texto. O movimento dos nossos olhos, de balão a balão, ajuda a impulsionar o deus do trovão pelos quadros. O mesmo ocorre com os efeitos sonoros de impacto, que inclusive são desalinhados com a intenção (imagino eu) de reforçar a direção do movimento.
A narrativa no cinema, assim como nos quadrinhos, se baseia na sucessão de imagens estáticas. Ao contrário do cinema, porém, em que essa sucessão é construída de tal forma a simular perfeitamente o movimento aos nossos olhos, nos quadrinhos essa sensação de movimento fica a cargo do leitor, que preenche na sua cabeça as lacunas entre uma imagem e outra. Criadores talentosos como Walt Simonson tornam esse processo mais natural, confortável e dinâmico através do uso de recursos como o próprio sentido da leitura, compondo páginas que demonstram todo o potencial narrativo dos quadrinhos.
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É bem provável que os melhores artistas de cenas de luta trabalhando atualmente pra Marvel e pra DC sejam o espanhol Bruno Redondo – que faz um trabalho magistral à frente de Nightwing, já mencionado neste blog – e a italiana Elena Casagrande, responsável pelo lápis do arco atual de Black Widow. Toda edição da Viúva Negra desenhada por Casagrande tem pelo menos uma página que se destaca como uma cena exemplar de ação, combinando violência e legibilidade em um layout muitas vezes inovador.
Em Black Widow #8 (junho de 2021), Casagrande abusa da criatividade ao estruturar um double page spread no qual Natasha Romanoff, a Viúva Negra, invade um galpão em que alguns capangas mantêm em cativeiro sua amiga Yelena Belova, a Viúva Branca.
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O que, num primeiro momento, aparenta ser uma cena bastante poluída, numa análise mais cuidadosa se revela uma cena elegante e extremamente legível. Natasha irrompe no galpão pela claraboia no primeiro quadro e ataca a bandidagem ao longo dos quadros seguintes. A cena transmite um forte senso de velocidade (aspecto que é favorecido pela economia textual) e de precisão, com a Viúva Negra esbanjando economia de movimentos e dando conta de vários capangas simultaneamente. Não deixe de perceber o delicioso detalhe da mão de Yelena pegando emprestada a pistola de Natasha no quinto quadro.
O layout da página é um show à parte. No plano mais amplo, temos uma visão geral de todo o espaço, enquanto que os diferentões quadros circulares, que congelam momentos-chave da cena e vão se ampliando do canto superior esquerdo até tomarem toda a página, acompanham Natasha enquanto ela se movimenta pelo galpão, como uma câmera que se move lateralmente ao mesmo tempo em que executa um zoom out. Mais uma vez, uma disposição criativa de texto e imagens atinge um efeito que só é possível na mídia dos quadrinhos.
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Eu acredito que o uso criativo das onomatopeias é um daqueles artifícios que tornam os quadrinhos uma arte distinta de todas as outras. Só nos quadrinhos essa combinação específica de palavra e imagem tem a capacidade de evocar no leitor um efeito sonoro, sua função primordial, e ao mesmo tempo contribuir com o storytelling, uma função infelizmente subutilizada, mas não menos importante.
Pra exemplificar o que eu quero dizer, separei algumas páginas de duas fontes bem díspares: Love and Rockets, de Jaime Hernandez, e o Thor de Walt Simonson. Hernandez e Simonson são autores que, sempre que possível, aproveitam as onomatopeias para atingir algo além da pura simulação do som na página.
Em Love and Rockets: New Stories #7 (2015), Jaime Hernandez inova ao sonorizar uma competição de natação entre duas adolescentes, uma bem mais veloz do que a outra. Em um quadro, Hernandez representa com as letras BRRRRRRR a rápida ultrapassagem de Hilly sobre Tonta (que havia queimado a largada, desonestamente), e, no quadro seguinte, as mesmas letras AO CONTRÁRIO, espelhadas e orientadas da direita para a esquerda, representam Hilly já voltando e vencendo a disputa antes mesmo de Tonta completar metade da prova. É um efeito que não apenas simula o som da água deslocada com violência pela nadadora, mas que também contribui para narrar a cena, indicando o sentido em que Hilly se desloca na piscina.
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Na mesma edição, Hernandez brinca mais uma vez com som e distância, extrapolando os limites do balão com o "YOOOOUUU..." descendo pela página, acompanhando a queda da personagem Anima, e estendendo o efeito ao quadro seguinte, em que as letras "U... U... U..."continuam em queda, mas em tamanho menor, simulando também a distância a partir da qual presenciamos cada um dos momentos: bem de perto, no primeiro quadro, e de longe, no segundo.
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Na edição #8 da mesma revista (2016), Hernandez usa a onomatopeia para aproximar dois quadros no tempo e indicar uma rápida transição entre eles. O espaço entre um quadro e outro, nos quadrinhos, muitas vezes significa a passagem do tempo entre dois momentos, e, normalmente, intuir quanto tempo transcorreu entre um quadro e outro é algo que fica a cargo do leitor. Autores de quadrinhos usam vários recursos para tentar "controlar" (na falta de uma palavra melhor) esse tempo percebido entre os quadros. Nos exemplos a seguir, ao estender as onomatopeias entre um quadro e outro, Hernandez consegue estabelecer um elemento que atravessa o gutter e conecta temporalmente os dois momentos. A rigor, temos uma mesma onomatopeia, separada entre dois quadros, mas conectando esses quadros no tempo; no primeiro exemplo do post, na disputa na piscina, Hernandez conseguiu um efeito similar.
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Ainda na edição #8, Hernandez consegue simular uma espécie de eco nas falas do vilão, utilizando balões com as mesmas palavras, um meio escondido atrás do outro. O efeito é duplo: além de representar o eco em si, o eco ajuda na caracterização do personagem: seus gestos e palavras ganham uma dimensão melodramática, grandiosa e megalomaníaca.
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As experimentações com onomatopeias, felizmente, não são uma exclusividade dos quadrinhos independentes. Também nas grandes editoras comerciais é possível encontrar exemplos do uso criativo dos efeitos sonoros. Na página a seguir, retirada de Thor #344 (junho de 1984), vemos o demônio Surtur prestes a temperar sua espada no enxofre, e ao descer a lâmina ele corta a palavra "DOOM!", que representa tanto o som da espada atingindo a lava sulfúrica quanto os funestos desenvolvimentos futuros da história – doom é "destino" em inglês. Simonson usa a onomatopeia para simular um efeito sonoro e, simbolicamente, fazer a história avançar, num efeito que só é possível nas histórias em quadrinhos.
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Reza a lenda que, quando Wally Wood foi contratado pela Marvel em 1964 (seu primeiro trabalho pra editora foi Daredevil #5, e duas edições depois ele já introduzia o uniforme vermelho que o herói usa até hoje), ele era o artista mais bem pago da indústria dos quadrinhos. Wood vinha da revista MAD (ele foi um dos artistas da edição #1 da revista, em 1952), onde trabalhou por 12 anos e na qual recebia 200 dólares por página. Para se ter uma ideia, a Marvel pagava 20 dólares por página pra boa parte dos seus desenhistas. Wood chegou na Marvel recebendo 45 dólares por página arte-finalizada (lápis + nanquim), bem acima da média paga pela editora, mas bem aquém do que ele estava acostumado a receber na MAD.
Pra manter o mesmo nível salarial de antes, Wood precisou acelerar o ritmo de produção. Foi por essa época que surgiu o famoso diagrama "22 Panels That Always Work", que Wood teria elaborado justamente para ganhar tempo, para si e para seus assistentes, na elaboração dos layouts: "22 Panels" oferecia uma forma rápida e eficiente de escolher um ângulo pra cada quadro, sem precisar pensar demais, ao mesmo tempo em que evitava a repetição dos mesmos ângulos em uma cena, o que poderia tornar a narrativa tediosa e desinteressante.
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Variar os ângulos de cada quadro, portanto, parecia algo essencial a Wally Wood para manter vivo o interesse do leitor. É curioso que esse tipo de preocupação parece não afetar alguns autores, como Jaime Hernandez nesta cena de Love and Rockets: New Stories #6 (setembro de 2013):
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Temos um grid de 8 quadros em que o ângulo da câmera não varia um milímetro sequer. O que varia – e aí está a chave da cena – é a linguagem corporal e as expressões faciais de cada um dos cinco personagens retratados.
Jaime Hernandez é um mestre dos diálogos, e já declarou em várias entrevistas que adora cenas (seja nas suas próprias histórias, seja nas histórias de alguns dos seus personagens favoritos, como Archie ou Dennis, o Pimentinha) nas quais os personagens simplesmente conversam – como na página a seguir (Everything's Archie #14, de 1971):
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Pode-se argumentar, aliás, que é justamente o ângulo fixo que, na página de Hernandez, ressalta ainda mais a exatidão dramática com que o artista combina as palavras, as expressões e as reações de cada personagem na cena. Não precisamos reposicionar nosso ponto-de-vista a cada quadro: nossa atenção pode se dedicar exclusivamente às interações entre os personagens. Ou por outra: o que acontece na cena é tão interessante que alterações de ângulo ou de iluminação são desnecessárias. Essa é uma técnica que Jaime Hernandez usou em várias ocasiões, mas que só funciona, é evidente, com artistas do seu calibre. O que está sendo dito e retratado tem que ser interessante e envolvente, como é normalmente o caso nas histórias desse mestre dos quadrinhos.
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Durante anos, as cenas de ação nos quadrinhos de herói, seja na Marvel, na DC ou em outras editoras menores, seguiram o padrão estabelecido por Jack Kirby, no início dos anos 60, em títulos como Fantastic Four, Hulk e The Avengers. Para atingir os efeitos dinâmicos que desejava, Kirby lançava mão de uma combinação de elementos que incluíam corpos contorcidos, bocas abertas, linhas de movimento, rajadas de energia, onomatopeias e, no plano textual, recordatórios e diálogos dramáticos repletos de negritos e pontos de exclamação. Eis uma página de New Gods #11 (novembro de 1972), retratando uma batalha entre os irmãos Orion e Kalibak, filhos do vilão Darkside:
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Kirby normalmente escolhia enfatizar o poder e a força bruta dos personagens. Cada soco lançava o adversário a metros de distância e parecia ter a potência para derrubar um prédio. Seu estilo estabeleceu um padrão nas revistas da Marvel, logo seguido pelos artistas de outras editoras, e em cada revista os leitores podiam contar com pelo menos uma cena de luta desenhada no padrão Kirby de dinamismo.
Esse padrão começou a ser, digamos assim, "amenizado" já nos anos 70, com artistas como Neal Adams, que tinham um estilo mais refinado, com influência da ilustração publicitária e das escolas de belas-artes da qual provinham muitos dos artistas que ingressavam na indústria dos quadrinhos naquela época. Percebam que, na cena seguinte (Daredevil #182, maio de 1982), a ênfase de Frank Miller está muito mais na elegância, na precisão e no encadeamento lógico dos movimentos entre um quadro e outro. Com Kirby, cada quadro era uma explosão de energia e testosterona; com Miller, a fluidez de toda a sequência, e não a força de cada quadro isoladamente, é que ilumina a cena e entrega o efeito pretendido pelo artista. Miller deixa a cena ainda mais ágil ao eliminar todo e qualquer diálogo ou narração, um toque de realismo (afinal, as pessoas normalmente não fazem discursos enquanto lutam) que é uma das marcas da era moderna. Mas todo realismo tem limites: percebam que estão mantidas convenções como as linhas de movimentos, os pontos de impacto e as onomatopeias.
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Nos quadrinhos de herói atuais, encontramos exemplos de ambas as tradições. Não é difícil encontrar combates na melhor tradição kirbyana, com muitos diálogos entre os combatentes e socos que poderiam afundar o Titanic. Avengers #43 (março de 2021), com arte de Javier Garrón, é um exemplo:
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Da mesma forma, aqui e ali surgem exemplos de cenas em que a luta é retratada como uma dança coreografada, e a elegância e a precisão dos movimentos são o foco, como em Nightwing #80 (maio de 2021), com arte de Bruno Redondo:
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É interessante notar, nas artes de Kirby e Garrón, como o uso de quadros com orientação vertical dá mais peso e força gravitacional às cenas, agregando ao efeito explosivo que os artistas pretendiam, enquanto nas artes de Miller e Redondo os quadros com orientação horizontal dão mais leveza e agilidade ao combate, com um efeito elegante e fluido.
Não existe, é claro, uma forma certa e uma errada de desenhar uma cena de luta. Ambas as tradições que identificamos aqui têm intenções e efeitos diferentes. O importante é que o artista escolha a maneira certa de retratar a ação, de uma forma que seja coerente com a narrativa e com as características de cada personagem.
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Frank Miller assumiu os desenhos da revista Daredevil na edição #158 (maio de 1979), e já na edição #168 acumulou também os roteiros do Demolidor. Eventualmente, sua passagem pela revista seria incensada como um dos momentos fundamentais na transição da era de bronze para a era moderna dos quadrinhos.
Hoje, com a vantagem da visão retrospectiva, sabemos o quão revolucionárias aquelas edições de Daredevil se revelariam. A qualidade do material era inegável, mesmo para quem lia as revistas recém saídas da gráfica. Porém, o peso real da sua contribuição para a história da nona arte só ficaria evidente um pouco mais adiante.
Resolvi identificar em que edição, especificamente, Miller finalmente firmou seu estilo, encontrou sua voz e consolidou os elementos que distinguem suas histórias. As candidatas eram várias: a própria edição #168, a primeira que ele roteirizou, que marca a primeira aparição da assassina Elektra Natchios; a #174, na qual Miller nos apresenta pela primeira vez a organização ninja Tentáculo (em inglês, The Hand); ou a #176, na qual surge o personagem Stick, mentor do Homem sem Medo.
Meu voto, porém, vai para a edição #179, com a história "Spiked!" (fevereiro de 1982). Na minha opinião, essa é uma das edições que lançaram os quadrinhos de herói na modernidade. Vou tentar explicar o porquê.
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Podemos começar com a constatação de que o Demolidor NÃO é o protagonista da história. Toda a narrativa gira em torno de Ben Urich, repórter do Clarim Diário que investiga as ligações corruptas entre Wilson Fisk, o Rei do Crime, e um dos candidatos à prefeitura de Nova Iorque. Urich participa de todas as cenas da história. É através dele, de suas impressões, de sua voz, que acompanhamos os acontecimentos. Miller antecipou em 12 anos o que Kurt Busiek faria em 1994 em sua popular série Marvels. Essa radical mudança de ponto de vista, enfatizando a perspectiva de um personagem secundário que mal havia aparecido nas histórias do Demolidor até ali, foi algo novo e inusitado.
Chama também a atenção o desprezo de Frank Miller por uma convenção importante que era respeitada em todas as histórias da Marvel no período: o splash de abertura, que deveria acontecer nas páginas iniciais e apresentar o herói em uma situação dinâmica, normalmente acompanhado por recordatórios que ajudavam os novos leitores a acompanhar a continuidade nas histórias de herói, tanto da Marvel quanto da DC. Essa era uma prática que Miller vinha respeitando até a edição anterior (#178), que trazia o splash a seguir:
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Percebam a apresentação do personagem em pose dinâmica; os créditos; os balões de pensamento; os monólogos expositivos que explicam aos novos leitores como o Demolidor adquiriu seus poderes. Tudo dentro dos padrões editoriais da Marvel de então.
Na edição #179, tudo isso é subvertido de alguma forma. Os créditos, por exemplo, são concisos e integrados à narrativa, apresentados na forma de um letreiro de cinema em close, com a câmera se afastando no quadro seguinte:
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A ambientação da cena inicial em um cinema e os quadros horizontais não são as únicas referências à sétima arte presentes na história. A própria forma como a história é narrada remete a uma das paixões de Frank Miller: o cinema noir, com suas narrações em primeira pessoa, recheadas de realismo, ironia e cinismo. Essa é a primeira vez em que Miller usa esse recurso, que se tornaria uma de suas marcas registradas. Percebam o cuidado com o letreiramento (pelo grande Joe Rosen), que simula os tipos usados nas máquinas de escrever e usa caixa alta e baixa, prática incomum numa época em que letras em caixa alta eram a regra, raramente quebrada.
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Outra característica marcante e inovadora da história é a total ausência de balões de pensamento e recordatórios em terceira pessoa. Mesmo a batida exposição sobre os poderes do herói é resolvida por Miller de uma forma original e harmoniosamente integrada à narrativa. Quem nos recorda a origem do Demolidor não é o próprio herói ou um narrador onisciente, mas Urich, que conhece o passado e a identidade secreta do Demolidor, mas decide não publicá-la (o que certamente lhe garantiria um prêmio Pulitzer) por lealdade ao herói.
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Toda a narrativa se desenvolve com base apenas nos diálogos entre os personagens e na narração em primeira pessoa do repórter Ben Urich, que comenta as cenas com uma voz particularíssima e individual, algo praticamente inexistente nos quadrinhos de heróis da época, em que a regra era uma narração pomposa, redundante, impessoal e frequentemente chatíssima. Em duas ou três páginas, na melhor tradição tchekoviana, Miller nos coloca diante de um personagem interessante, carismático, tridimensional, com o qual passamos a nos importar de forma quase que automática.
Miller vai além ao estabelecer Urich como um personagem de carne e osso, fumante compulsivo, um workaholic com uma ética de trabalho quase inflexível, e os efeitos negativos que essa obsessão pelo jornalismo trazem para sua vida pessoal são exemplificados em uma deliciosa cena de Urich com sua esposa. O tratamento que Miller dá a esses dois personagens está a anos-luz de distância da idealização dos estereótipos olímpicos comuns nos quadrinhos de heróis. Entre páginas recheadas pelos corpos invariavelmente sarados de heróis e vilões, Miller deixa entrever um sopro de humanidade, de vida comum, de romantismo cotidiano, em uma clara homenagem a um de seus ídolos, Will Eisner.
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A noite do casal Urich, porém, é mais uma vez vítima do trabalho de Ben. Ele é chamado para um encontro com um informante que lhe passa uma dica aparentemente quente, mas que o Demolidor percebe se tratar de uma armadilha. Dito e feito: no local em que Ben deveria se encontrar com uma suposta amante do candidato corrupto disposta a incriminá-lo, quem espera o repórter é Elektra, contratada pelo Rei do Crime pra matar Ben. Elektra derrota o Demolidor em combate, e aparentemente perde Ben de vista, mas uma tosse inconveniente entrega a localização do repórter. Um autor comum faria Ben pisar em um lata velha ou esbarrar em alguma coisa qualquer. Não Miller. Ao longo de toda a história, ele nos mostra Urich como um fumante inveterado, que ouve de todo mundo que o cigarro vai acabar o matando. A tosse do repórter, nessa cena, ganha então um caráter profético, inexorável, natural. Tudo na história tem uma função, tudo contribui para o gran finale pretendido pelo autor.
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Os dois primeiros quadros acima exemplificam a forma mágica como os quadrinhos, na mão de um mestre como Frank Miller, brincam com o tempo da narrativa. Ao posicionar o quadro com a reação de Elektra antes do quadro com Ben tossindo, Miller aponta para a simultaneidade das duas imagens: a reação de Elektra, uma assassina treinada e extremamente alerta, é imediata. A colocação da reação de Elektra após a imagem de Ben tossindo não teria esse efeito, dada nossa tendência de imaginar, entre um quadro e outro, o transcurso de algum intervalo de tempo, por menor que seja. O efeito produzido pela inversão das imagens e pelo letreiramento, ligando os dois quadros e reforçando essa simultaneidade, é algo que só os quadrinhos podem proporcionar.
A página final é de um expressionismo e de uma dramaticidade que dispensa comentários:
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Malditos cigarros, de fato.
Quarenta anos depois, Daredevil #179 é uma obra-prima que não perdeu nada de sua força e de sua intensidade. Na minha opinião, é a primeira de uma série de single issues impecáveis com as quais Frank Miller transformou para sempre a história do Demolidor e dos quadrinhos de super-heróis.
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Brincar com as convenções dos quadrinhos de super-heróis é uma das principais características da obra de Grant Morrison. All-Star Superman, publicada entre 2005 e 2008, traz vários exemplos dessa abordagem modernista de Morrison aplicada ao universo do Homem de Aço.
Um dos tropos mais desgastados do mundo dos super-heróis diz respeito às origens dos personagens. Editores e autores sentem a necessidade de, periodicamente, recontar a gênese dos heróis: onde nasceram, em que circunstâncias adquiriram seus poderes, que eventos traumáticos os motivaram a dedicar suas vidas a combater o crime. Revisitar as origens tem duas funções principais: modernizar os personagens e conectá-los de uma forma mais íntima a novos leitores.
O problema começa quando esses personagens têm a popularidade de um Batman ou um Super-Homem. Quem não conhece a origem do Super-Homem, o último filho de Krypton, enviado à Terra pelos pais cientistas como a última esperança do planeta condenado à destruição por seu moribundo sol vermelho? Quem não sabe que, sob a luz do nosso sol amarelo, o bebê alienígena, adotado pelo simpático casal Kent, desenvolveu poderes que o tornaram praticamente um deus? Ainda faz sentido gastar dinheiro, tempo, papel e tinta com mais uma origem do Super-Homem?
Grant Morrison brinca com essas convenções na antológica página de abertura de All-Star Superman #1.
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Quatro imagens e oito palavras. PLANETA CONDENADO. CIENTISTAS DESESPERADOS. ÚLTIMA ESPERANÇA. CASAL GENTIL. E só. Morrison se apoia em um conhecimento que ele SABE que seus leitores possuem sobre os anos iniciais do personagem. É uma página exemplar de concisão narrativa, com arte soberba de Frank Quitely, que enfatiza, nos quatro quadros, um elemento fundamental da história: a luz solar.
A página seguinte ressalta esse elemento central de All-Star Superman de forma inequívoca: vemos o Super-Homem praticamente atravessando o sol, compondo, na minha opinião, uma das mais belas imagens já feitas com o herói, uma imagem que o define. Quando eu penso em "Superman", esse spread de duas páginas é a primeira imagem que me vem à cabeça.
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Percebam como Morrison continua peitando convenções, de forma bastante sutil. Na página anterior, ele acabou de recontar toda a origem do maior super-herói de todos os tempos com oito palavras. Aqui, temos que recorrer à via negativa e nos perguntar: o que está faltando nesse spread? A resposta é: palavras. Falta um texto expositivo que nos explique o que Superman está fazendo tão perto da superfície do sol. Falta um discurso pomposo, cheio de adjetivos, pontos de exclamação e negritos. Pelo menos, é isso que fomos acostumados a esperar, com base em décadas de páginas de abertura como a seguinte (Action Comics #280):
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A página silenciosa de Morrison é uma pista da intenção do autor de criar uma história permanente, digna de ser revisitada incontáveis vezes no futuro. Fica evidente, para quem já leu a história pelo menos uma vez, que essa imagem do Super-Homem diante do sol sintetiza All-Star Superman de forma brilhante (sem trocadilhos). O sol é a fonte dos poderes do herói, ao mesmo tempo em que é a raiz da moléstia que ameaça sua vida. A viagem ao sol para resgatar os membros de uma expedição malfadada à estrela faz parte de um plano de Lex Luthor para matar o Super-Homem. A radiação que o herói acumula por se expor tão diretamente à energia solar irá amplificar seus poderes a níveis inéditos, poderes que ele usará para realizar uma série de feitos que servirão como seu legado à humanidade que o acolheu. Tudo isso, que será contado ao longo de 12 edições, está condensado nesta belíssima imagem. E achávamos que Morrison estava sendo conciso ao recontar a origem do Super-Homem em oito palavras.
Darwyn Cooke fez algo semelhante em DC: The New Frontier, ao abrir a história com uma imagem aparentemente inocente de ambientação, até que descobrimos, no final, que a pacata ilha mostrada na abertura é, na verdade, o vilão de toda a trama.
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É como se Cooke e Morrison entregassem a "chave" da história logo na primeira imagem. Todos os eventos narrados nas dezenas de páginas seguintes de All-Star Superman têm seu ponto crucial ali, naquela visita ao sol. A partir desse ponto, tudo que acontece ganha um caráter quase que inevitável, inexorável, fatal: Super-Homem VAI sofrer efeitos da radiação, VAI ter que tomar decisões importantes, VAI demonstrar todo seu heroísmo e, assim, nos emocionar como nunca antes desde 1938.
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"Leaping into the Light" é o nome do arco iniciado no #78 da revista Nightwing, da DC Comics. Os roteiros são de Tom Taylor e os desenhos são do espanhol Bruno Redondo. Os leitores mais atentos perceberam de imediato várias mesuras que a revista faz ao período em que Matt Fraction e David Aja estiveram à frente do título Hawkeye, da Marvel (2012-2015). Porém, a principal semelhança, pode-se argumentar, é o entrosamento entre roteirista, desenhista e demais artistas em ambas as publicações.
Um aspecto que salta aos olhos em Nightwing é a plasticidade das cenas de luta desenhadas por Redondo. Os layouts são sempre claros, elegantes, quase lógicos. Os olhos são guiados com muita naturalidade pela página, tornando a leitura fácil e ágil, um requisito para uma página de ação eficiente.
O exemplo abaixo, retirado de Nightwing #81, é uma amostra da engenhosidade da equipe criativa:
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O texto é curto e direto. O sentido da leitura é de uma clareza solar e dispensa as setas que eu usei em posts anteriores. Redondo parte de um layout clássico – o grid de 9 quadros – e o reconfigura para simular um corte transversal do apartamento que Asa Noturna/Dick Grayson acaba de invadir. Reparem que os gutters que separam os quadros são também barras tubulares que compõem a engenharia do espaço. Detalhes cartunescos como as linhas de movimento da espada e do salto de Dick, as marcas de impacto do soco e do chute na espada, o vidro da escadaria se quebrando e os pequenos círculos que representam a tontura do herói são usados com eficiente parcimônia e trazem dinamismo à cena. O quadro final, com uma onomatopeia seca composta somente por consoantes, coloca nosso herói pra dormir, acompanhado da constatação tardia: "Eu deveria ter dado ouvidos aos meus amigos" (que haviam recomendado, anteriormente na história, que ele não saísse de casa naquela noite). A página é uma obra-prima, em que tudo – texto, desenhos, cor, letreiramento – trabalha em harmonia e atinge um efeito agradável e poderoso. 
Todas as edições desse arco de Nightwing são recheadas de páginas maravilhosamente bem compostas como o exemplo acima. 
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Com uma mãe e uma penca de irmãos fanáticos por histórias em quadrinhos, o amor de Jaime Hernandez pela nona arte foi algo natural. Sua obra bebeu nas diversas fontes que Jaime consumiu na infância e na adolescência: quadrinhos de super-heróis, Disney, MAD, histórias de terror e horror, Archie, Peanuts, literatura pulp, além da cena punk, dos quadrinhos underground e da cena cultural mexicana na Califórnia dos anos 60 e 70.
Falando especificamente da influência da Marvel, da DC e de outras editores menores sobre a arte de Jaime Hernandez, a expressão mais óbvia dessa influência está ainda na primeira fase da revista Love and Rockets, com 50 números publicados entre 1982 e 1996. O maior desejo de Penny Century, uma das personagens centrais desse período, é ganhar superpoderes. Na edição #3, a própria história que dá título à revista envolve super-heróis. No mesmo número, a história "Maggie vs. Maniakk" é uma divertida paródia do gênero.
Uma influência mais oculta, porém, pode ser encontrada nos layouts e no storytelling que Jaime usa em algumas histórias. Um recurso curioso, muito usado por Jaime, é a colocação de um personagem anônimo, em primeiro plano, no canto do quadro, olhando diretamente para o leitor.
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Esse artifício, sempre com nível da "câmera" na altura dos olhos do leitor, tem o efeito de nos atrair para a história, de humanizar a narrativa, de aumentar nosso envolvimento emocional com os personagens e de escancarar o voyerismo que inevitavelmente experimentamos ao acompanhar a história de Maggie e sua turma. Curiosamente, esse recurso foi bastante explorado nas histórias desenhadas por Jack Kirby, com efeitos semelhantes, como, por exemplo, no quadro abaixo, retirado de X-Men #2 (1963):
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Já nas páginas abaixo, Jaime explora a íntima relação entre texto e imagem nas histórias em quadrinhos empregando blocos de texto no topo de cada quadro, acompanhado de uma imagem que serve como uma espécie de comentário ao texto (e vice-versa), em páginas regulares de seis quadros, normalmente com três linhas de dois quadros cada. Esse recurso foi muito explorado nas histórias protagonizadas pelo personagem Ray Dominguez na segunda encarnação da revista, publicada entre 2001 e 2007:
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Esse recurso era usado nos quadrinhos de super-heróis como um conveniente artifício expositivo em algumas histórias, como, por exemplo, em Fantastic Four #234, com roteiro e arte de John Byrne:
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Nos dois casos, a regularidade do layout reforça o aspecto cotidiano e mundano das cenas retratadas. Na história de Jaime, o fato de imagem e texto compartilharem, de certa forma, o mesmo espaço, sem a separação marcada existente no quadro de Byrne, deixa a relação entre texto e imagem mais íntima, na minha opinião. E a narração em primeira pessoa intensifica ainda mais essa simbiose.
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