Tumgik
noturno-vulgar · 4 years
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o amor que não se vê
Mas afinal, quando começa a vida? O sopro mágico, o início do animus, o conceito de existência. Para os católicos, para os ateus, para os filósofos niilistas, a ideia de vida é explicada por tantos e entendida por poucos. Mas eu particularmente nunca comprei a ideia de “penso, logo existo”. Acho que é tudo um pouco mais simples do que isso. A gente existe não é quando a gente pensa. A gente existe quando pensam na gente. Existimos na memória, no amor, nas orações antes de dormir, no carinho e no sorriso que formam os lábios ao pronunciarem um nome. Um nome, uma ideia, uma perspectiva. E de repente o mundo se enche de amor e os olhos brilham e o coração carrega consigo pra toda a eternidade aquela existência. A gente existe no mundo quando a gente existe pra alguém. E a gente sempre existe pra alguém. Porque alguém sempre existe pra gente. É essa a origem da nossa existência.
Origem. Em latim, mater. Que também pode ser traduzido como mãe. 
Mãe. Ou, em William Makepeace, “o nome de Deus nos lábios e corações das crianças pequenas”. A palavra que, pelo amor implícito em sua própria essência, nos dá origem. Nos dá sentido. Nos faz existir. Existindo em vida ou não, em um mundo terreno ou como pequenos anjos a brincar no céu. A existência independe de um plano físico, um corpo terreno. Contrariando todos os filósofos e teóricos e homens importantes de terno e gravata, a existência tem um só requisito. O amor. O amor que alimenta, que cuida, que dá origem. Mater. Mãe. Ou, em tradução livre, “a representação mais fiel do divino alcançável pelos olhos terrenos”.
A vida começa exatamente aí. Quando começa o amor.
em memória de Benjamin o hiena mais amado.
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noturno-vulgar · 4 years
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O timão do barco tremia sob as minhas mãos cobertas de cicatrizes. A água rugia ao meu redor e os salpicos de oceano cobriam as minhas vistas. A noite era escura e a única fonte de luz eram os raios pontuais que pontilhavam aquele céu de carvão em um janeiro gelado. 
E lá estava eu. Navegando mais uma vez em busca de paz.
Era engraçado o conceito de turbulência, se explicado pela física moderna. Mas eu não sabia porra nenhuma de física moderna. Eu sabia lembrar de alguns poucos sonhos que eu tinha durante as poucas horas de sono que eu tinha. Eu sabia passar a mão na cabeça das cadelas que me acompanhavam e rosnavam pra mim ou pulavam nas minhas pernas pedindo carinho. Um café forte pela manhã, um chá quente pela noite. Só que o chá eu dispensava e trocava por qualquer entretenimento acessível e fácil de digerir. E o café era a minha coisa preferida nas manhãs. Eu gostava de olhar o horizonte enquanto tomava café. Ficava pensando em como a vida era. O caminho que o sol percorria pra chegar até aquele exato ponto no céu. Ou o caminho que nós percorríamos pra chegar naquele exato ponto do Universo.
A chuva diminuiu. O vento estava mais calmo. Fazia um dia bonito lá fora agora. Às vezes o que a gente precisa pela manhã é isso. Uma xícara de café e algumas linhas terapêuticas.
E aqui estou eu. Livre para navegar mais uma vez em busca de paz.
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noturno-vulgar · 5 years
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Uma velha gorda se embalava devagar em uma cadeira de balanço. O barulho de madeira rangendo sob os duzentos e tantos quilos era quase insuportável. O quarto era escuro, iluminado por uma fresta na cortina pesada e empoeirada. A velha olhava fixamente para um canto. Sorrindo e cantarolando baixinho. E a madeira continuava rangendo, ensurdecedora. O ar era modorrento. A velha tinha cheiro de mofo. Mofo e dor.
Parado na porta, um rapaz observava tudo, ainda em confusão.
O corpo esguio e alto, os olhos d’um azul céu, o rosto barbado disfarçando a idade tenra. Passo após passo ele entrou no quarto, devagar. Alternando os olhares entre o maço de cigarros em cima da cama e a velha gorda. O assoalho embaixo dos pés rangia, suave, abafado pelo ranger da cadeira de balanço. Passo. Passo. Passo. Rangido. Rangido. Rangido. A mão esquerda esticada para pegar os cigarros. Os ouvidos zuniam com a tensão. Zuniam tão alto que ele não percebeu que os rangidos haviam cessado.
Uma velha gorda parara de se embalar devagar em uma cadeira de balanço.
 - Acorda, arrombado. Você tá fedendo a lixo e eu vou te matar.
 - Que horas são, caralho?
 - Hora de levantar e lavar a louça. Hoje é teu dia.
O rapaz levantou suado. Tropeçando nas garrafas de cerveja acumuladas ainda teve que desviar de uma luva de boxe jogada pelo colega de quarto. Pra melhorar os reflexos, ele dizia. O contraste era interessante. Um deles parecia saído de um filme onde era o par romântico da Drew Barrymore. O outro parecia que tinha saído de um carro da máfia segurando um taco de baseball. E aquele apartamento parecia ter saído diretamente do sétimo círculo do inferno. Fedendo a cigarros e fracasso, era uma mansão de luxo para os dois aspirantes a boxeador. Um dia as coisas melhorariam. Mas até lá eles tinham de se contentar com aquele fedor de merda e o desespero constante de um gato gordo chamado Satan e meia dúzia de ratos imensos morando debaixo dos balcões. 
O brutamontes, depois de escancarar as cortinas, saiu do quarto, fechando a porta. O outro então, ainda meio atordoado pelo sonho, acendeu um cigarro e abriu a porta que, em tese, deveria dar na sala. Só que o que havia ali não era uma sala. Nada de sala. Nada do colega de apartamento. Nada de gato gordo chamado Satan. 
Era um quarto.
Um quarto escuro. Iluminado apenas por uma fresta na cortina pesada e empoeirada. Cheiro de mofo e dor. O barulho de madeira rangendo sob os duzentos e tantos quilos
Uma velha gorda se embalava devagar em uma cadeira de balanço. 
E o maço de cigarros não estava mais em cima da cama.
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noturno-vulgar · 5 years
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ganindo, volta o lobo
O ronco da moto se espalhava ao redor daquela rodovia vazia. Era um noite insossa. Não fosse o asfalto acidentado e as constantes curvas aquilo tudo poderia simplesmente não passar de um sonho delirante de alguém nos idos dos quarenta graus de febre.
Mas ali havia um homem, e naquele homem havia tristeza.
A moto nova, presente de seu velho pai deslizava no escuro. Suave. Tranquila. Serena. O oposto do piloto. Tenso. Frio. Calado. O farol iluminava alguns bons metros pela frente e isso bastava. Era uma grande metáfora pro futuro - dava pra ver coisa ou outra mas o resto estava banhado em escuridão. E lá em cima as estrelas testemunhavam um ser errático perambulando pela imensidão de trevas e silêncio.
Ali havia silêncio, e naquele silêncio gritava a consciência.
A sensação na boca do estômago era ruim. Abstinência? Medo? Um princípio de intoxicação alimentar por conta do veneno que a vida sorrateiramente polvilhava pelos hambúrgueres e cafés? Na verdade aquela sensação tinha um nome, um rosto e uma personalidade bastante complicada.
Mais uma vez aquela figura aninhava-se na garupa sussurrando paranoias e medos e traumas e mais medos e pensamentos que estavam longe do ideal previsto por qualquer psiquiatra que se preze. A vista embaçava, o estômago revirava, as mãos tremiam. O coração parecia querer virar o Neil Peart. Respira fundo, conta até três. Não vomita. Dá muito trabalho pra limpar depois. Relaxa. Calma. Calma, vai ficar tudo bem.
Mas aquela voz dizia que não. Não ia ficar tudo bem.
 - Calma, grandalhão. Só piora.
Mas aquele homem era macaco velho. Não era a sua primeira viagem ao inferno. Não era a primeira carona pra’quela vagabunda palpiteira sentada de lado na moto, rindo.
Convenientemente um posto de gasolina surge. A moto para. Clique. Uma brasa flutua na escuridão, como em tantas outras histórias. Uma tragada, uma tossida, uma cuspida no chão. Boa noite amigo, boa noite. Uma água por favor. Posso usar seu banheiro? O melhor sorriso possível. As pessoas reconheciam a tentativa de ser simpático e eram simpáticas de volta. Respira fundo. Mais um trago. Olha pra estrada, rapaz. Caminhão, carro, caminhão, moto, carro, caminhão, a adolescência, carro, o primeiro beijo, o primeiro medo, moto, caminhão, caralho como os caminhões passavam. Um breve momento, mais um cigarro aceso. Carro, caminhão. As vitórias. As derrotas. De repente um estalo. A moça encostada na moto, agora apreensiva, já era sua velha conhecida. Já havia aparecido outras vezes. E, como em tantas outras vezes, bastou uma respirada ou duas pra ela desaparecer.
E naquele silêncio fez-se o sorriso. E naquele homem fez-se a paz.
Guerras são ganhas assim. Devagar. Uma batalha de cada vez. Passo por passo. Devagarinho que é pra não cansar muito.
Um trago, a estrada.
Livre novamente.
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noturno-vulgar · 5 years
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e, no oitavo dia, Deus acordou assustado
O Universo era grande demais. O tempo era complexo demais. Mas de alguma forma nós nos encontramos no exato ponto em que o espaço e o tempo se cruzam. E ali nasceram estrelas, daquelas que duram bilhões de anos e que nunca morrem, só explodem em uma supernova incandescente e voltam a fazer parte do mesmo velho Universo.
E quem sabe em outra vida ou em outra galáxia ou em outra linha do tempo os nossos caminhos já tenham se cruzado. Ou quem sabe nós fomos um evento aleatório, um capricho divino. Uma tentativa de Deus de provar que, mesmo em um mundo em ruínas, dois corações ainda podiam bater no mesmo compasso e sorrir somente por sentir aquele cheiro que emanava um do outro.
Você tinha cheiro de paz.
E Deus era testemunha das turbulências que eu havia passado. Eu quase neguei Cristo por três vezes, como Paulo. Eu quase havia perdido minha fé. As minhas cicatrizes me contavam histórias no espelho de tempos onde eu apenas sobrevivia. E você cuidou de mim. Me pegou no colo, me buscou no trabalho, me olhou no fundo dos olhos, me fez acreditar, andou de mãos dadas comigo e me fez sorrir. Tudo sem pretensão alguma, sem cobrança alguma, somente o acordo tácito de reciprocidade que havíamos assinado com um beijo tímido debaixo da luz branca de um poste no centro da cidade. E agora a garupa da minha moto te pertencia, o meu amor te pertencia, meus suspiros te pertenciam, minha respiração ofegante te pertencia. Agora eu te pertencia. Porque você não me pediu nada. Você me olhou com sinceridade e só pediu a minha sinceridade. E, da maneira mais sincera do mundo, o amor aconteceu. E hoje a minha maior alegria é acordar e te ver do meu lado, cabelo despenteado, cara de sono, usando uma camiseta velha e sorrindo tanto quanto o horário permite. A minha maior alegria é ter você do meu lado. Em qualquer lugar, em qualquer circunstância. Porque hoje eu confio. Porque eu sei que nada vai acontecer enquanto você estiver ali. Porque eu sou por você e você é por mim. 
Porque o amor é isso. Duas crianças nervosas caminhando sobre os destroços do passado rumo a um futuro incerto, mas sincero.
Porque o amor é isso.
O amor somos nós.
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noturno-vulgar · 5 years
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a ira de Deus, um disco de jazz
Devagar o mundo conseguia me quebrar. Fio da navalha. Um canivete no bolso, uma faca no cinto, um revólver debaixo do travesseiro. Eu conseguia sentir o cheiro de violência parando sobre meio tanque de gasolina e um par de botinas de couro laceadas. As minhas olheiras ficavam mais profundas enquanto eu ficava ainda mais arisco. E o silêncio se tornava um refúgio enquanto eu ia pra lugares nunca antes visitados. Os olhos de fogo, o ódio, as mãos trêmulas, um cigarro, dois, uma corrida rápida até o bar, meia dose de bourbon, olhares preocupados, um breve desabafo, conselhos genéricos, um pedido de desculpas, outro breve desabafo, mais conselhos genéricos, uns três copos d’água, o trajeto mais longo, insônia.
o perdão de Deus, um disco de jazz
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noturno-vulgar · 6 years
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que haja luz
deus e o diabo jogaram cartas pela minha alma a comissão técnica disse que foi empate.
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noturno-vulgar · 6 years
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a inércia é um corpo que cai eternamente
Eu olhei pr’aquela janela pelo menos umas oito vezes nos últimos vinte minutos. E em pelo menos cinco vezes eu me joguei mentalmente dali. Não é como se eu quisesse voar, longe disso. Eu queria me sentir mortal de novo, me libertar das amarras do tédio. A pilha de papel se acumulava ao longo da minha mesa, o telefone tocava ao longe, os carros passavam na rua logo abaixo de mim. O sol lá fora me convidava pra uma cerveja, um ou dois cigarros roubados na beira da estrada, liberdade. As nuvens fofas eram de algodão e o céu era de um azul-bebê, mas não daqueles bebês que choram. Daqueles bebês que riem e tem olhos da cor do céu. Daqueles bebês de filme. E de repente eu me pegava sorrindo.
Tudo tinha seu tempo, tudo tinha o seu ritmo, a felicidade chegava a passos lentos.
Deixe-se curar. Acredite no céu, molhe os pés na água salgada, nem que seja por três segundos. Ou três horas. Tenha paciência com você. Ninguém nasce pronto, ninguém nasce sabendo, ninguém nunca aprende tudo. As coisas são como são, não se culpe pela incapacidade dos outros. Nem todo mundo vai te machucar. E eu sinceramente precisava acreditar nisso nem que fosse uma última vez. Eu precisava confiar. Eu precisava puxar o cão daquela Magnum, mirar pra lugar nenhum e atirar no meio do nada.
Foi numa dessas que eu matei o Cupido. Foi em outra dessas que eu matei o amor. Levando em consideração que eu não acredito mais no Natal e o Coelhinho da Páscoa já foi morto, não me sobram muitos ídolos pra caírem. 
É hora de começar a erguer a sua própria estátua, criança.
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noturno-vulgar · 6 years
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picasso, rimbaud e steven spielberg entram num bar
você era arte, mulher era um poema do augusto dos anjos era profunda igual aquele blues que toca no fundo da cabeça com uma gaita de boca triste e angustiada
eu não entendia merda nenhuma de paleta de cores eu era um cidadão-médio que via entretenimento nas coisas mais sem sentido que haviam
sonetos de rimas pareadas músicas de quatro ou cinco acordes perto de você eu era uma criança de olhos brilhantes esperando ansiosamente o primeiro dia de aula segurando uma lancheira colorida e querendo fazer novos amigos
você tinha um brilho no olhar enquanto eu devagar me deixava apagar pela vida e você reacendia aquela chama, aquele frio na barriga com aquela sua porra de faísca incandescente e incendiária feito uma piromaníaca sorridente de cabelos esvoaçantes
e nós ríamos do mundo enquanto pisávamos manso em estradas já conhecidas e as mãos se entrelaçavam e os olhos se cruzavam e caralho, todo dia eu amargo a falta do teu beijo
e era aquela tranquilidade inquieta
aquela contradição
aquela dualidade em neologias que nem o rimbaud sonharia e nem se o noturno vulgar fosse uma magna opus maior do que já é e nem se as fendas operádicas realmente existissem eu ia precisar inventar uma palavra ou outra porque eu não sabia palavras o bastante pra falar de amor e de você
você era meu blues e com Deus por testemunha eu digo
você é o blues mais bonito que alguém já compôs
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noturno-vulgar · 6 years
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era como se ela fosse atemporal
Assim, do nada. Num repente. Imprevisível, como a chuva de verão. Eu me fascinava pelos jeitos que o Universo tinha de fazer as coisas acontecerem. Eu gostava disso, porque era o contraste que me movia. A contradição, a dualidade. Eu era do tipo que faz cara de poucos amigos, desconfia, aquele jeitão de quem briga no bar porque alguém derrubou a minha cerveja. Aqueles coturnos sempre empoeirados de estrada e ressentimento. Carregando nas costas o peso do mundo dos outros, a história de uma vida de autocomiseração, as cicatrizes de batalhas que nunca teriam fim. Mas ela era leve. Uma pluma no vento, andava como quem dançava e dançava como quem sorria. E sorria. Sorria o sorriso mais sincero e analgésico que existia. As dores da alma se esvaíam ali. E se fosse parar pra pensar provavelmente nós seríamos inimigos jurados. Mas o contraste entre a saia rodada e o jeans surrado era, senão, poético. Porque daquilo emanava a maior contradição de todas - eu me sentia livre pra não ser quem eu aparentava ser. E enquanto aquela mulher de riso bonito e olhos claros trovejava na mesa do bar, aquele homem de porte assustador e olhos de sangue via-se de volta à infância, onde as coisas eram mais simples e o mundo tinha mais cor.
O canivete que eu carregava no bolso, perto dela, virava uma flor. E, depois do crepúsculo, ver aqueles olhos cristalinos e calmos se inflamando era o meu momento preferido do dia.
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noturno-vulgar · 6 years
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com olhos em chamas e a graça de uma ave de rapina
Eu gostava muito de olhares. Eles costumavam dizer muito sobre alguém. Sobre as histórias e guerras e tudo aquilo que existe no curto período de tempo que é o trajeto entre nascer e morrer. E, se tinha algo que me encantava, era aquela paixão nos olhos. Jesus, aquilo era meu fraco. Gente apaixonada pelo que dizia, pelo que fazia, gente que, inobstante o discurso, tinha a alma por argumento mais forte.
E foi naquela mesa de bar que eu, mais uma vez, me perdi num par de olhos.
Eu fui sem pretensões. Caminhei pelo vale das incertezas mais uma vez, e Deus sabe que eu não me decepcionei. No momento em que aqueles lábios começaram a se mexer freneticamente pra falar de coisas das quais eu não sabia, ah, ali a magia aconteceu. O meu apocalipse era isso - uma mulher de muitas faces, mas um só coração. O jeito como as mãos femininas espalmavam sobre a madeira enquanto os olhos esbravejavam e os cabelos voavam na penumbra daquele bar com cheiro de cerveja. O jeito como os sorrisos e risos vinham fáceis, sem muita burocracia. O jeito tímido e sincero como os lábios se tocaram, quase como num romance adolescente. O céu nublado lá fora era dirigido por Raymond Chandler enquanto a trilha sonora era por conta do Nick Cave depois de ter contratado o Bohren & Der Club of Gore pra ser sua banda de apoio. Enquanto Robert Plant fazia alguns pontuais backing vocals, enquanto o Mário Bortolotto se sentava desconfortavelmente num banco de praça pra escrever o roteiro daquilo tudo. Era uma sinestesia do caralho. Eu bebia aquele sorriso, eu ouvia aqueles olhos, eu sentia o cheiro daquele ódio construtivo, aquele ódio que construiu impérios e destruiu imperadores. 
Nós não compartilhávamos muitas concordâncias, mas era mesmerizante ver aquela criatura em arroubos de sinceridade logo antes de desmanchar-se em risos criados sobre qualquer comentário bobo.
Aquela mulher era um precipício e eu por sorte tinha perdido meu medo de altura.
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noturno-vulgar · 6 years
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manchas de vinho tinto numa toalha de linho branco
Eu tinha meio tanque de gasolina e nenhum cigarro no maço. O meu velho Ford estava lá fora, na chuva, e haviam postos de gasolina abertos com álcool e nicotina suficientes para fazer Frank Sinatra chorar de alegria. E tudo o que eu conseguia fazer era me sentar em frente àquela velha televisão preto-e-branco e ver as gincanas de domingo narradas por um velhote de voz irritante. As pessoas eram patéticas, eu pensava comigo. Eu era patético. Havia um mundo inteiro de amor lá fora e eu preferia me fundir à poltrona e coçar o arremedo de barba que havia crescido em mim nessas três semanas engaiolado dentro de casa, curando outro pé na bunda. As filhas da puta iam embora sem um mínimo de consideração. Não se dignavam a uma última foda antes de foder completamente com a vida da gente. Simplesmente pegavam suas bolsas, retocavam o batom no espelho sujo do meu banheiro, roubavam um último cigarro de cima da prateleira da cozinha e saíam pela porta levando consigo aquele cheiro desgraçado de perfume e sexo. E eu já não tinha mais forças pra pedir pelo amor de Deus pra me deixarem com uns três ou quatro cigarros sobrando. Eu simplesmente me forçava a esquecer que até umas três horas atrás elas estavam peladas na minha cama, me jurando amor eterno. E eu, como um bom imbecil, sorria e acreditava. Até que elas pegavam suas bolsas, meus cigarros, retocavam o batom e iam embora. 
O meu Ford continuava lá fora, parado na chuva. Assim como eu continuava aqui dentro. Parado no tempo.
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noturno-vulgar · 6 years
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se eu soubesse que aquele seria nosso último beijo eu não teria simplesmente deixado nossos lábios se tocarem
eu provavelmente iria querer te pegar nos braços te levar pra cama uma última vez te dar uma ou dez razões pra você ficar
eu ia tentar te fazer lembrar de tudo o que a gente já tinha vivido as risadas e discussões e cervejas divididas em noites geladas de inverno
eu iria te contar uma última piada tentar te fazer rir uma última vez plantar na sua cabeça uma outra memória que não aquela última memória que você teve de mim um homem triste saindo abruptamente pela porta da sua casa
eu teria te beijado por mais tempo dez ou quinze ou vinte minutos eu teria ficado deitado com você naquele sofá assistindo qualquer porcaria na televisão
se eu soubesse que aquele seria nosso último beijo eu provavelmente teria feito tudo diferente mas é aí que mora o problema
a gente nunca sabe quando acaba.
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noturno-vulgar · 6 years
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o chamado incessante de um deserto já conhecido
Dia desses eu cheguei bêbado em casa. A noite tinha sido divertida, na medida do possível. Aquela tontura desagradável, o andar trôpego, espólios de guerra de uma ou dez cervejas. Eu tomei um banho pra lavar a sensação de desespero. E a realidade me bateu como um trem desgovernado. Até então eu tinha varrido pra debaixo do tapete qualquer tentativa de pensar sobre o grande fracasso amoroso que minha vida se tornara. Mas a bebida entrou e a verdade surgiu. E eu explodi em duas ou três lágrimas tímidas enquanto ouvia alguma música triste e me encolhia debaixo das cobertas pensando em quem iria a um possível funeral meu. Foi um esforço e tanto pra me convencer de que tudo ia passar e que o nó na boca do estômago ia dar lugar mais uma vez às borboletas. O problema era esse, eu mentia tão bem que eu acabava acreditando em mim mesmo. Mas nem mesmo o meu bom humor pra lidar com a situação estava sendo suficiente, porque eu finalmente parei de me esconder e comecei a sentir com sinceridade o que eu sentia. E doeu. Sempre dói, mas daquela vez doeu mais. A sensação de abandono infiltrava as paredes do meu quarto, encharcava meu colchão, me impedia de sair do lugar. Eu não queria mais sentir pena de mim mesmo, mas eu acho que eu estava viciado nisso. Era bom culpar o Universo. Ou pelo menos me eximir de um pouco da culpa. Pra justificar o meu orgulho, nessa altura já maior do que o bom-senso. 
Eu poderia pedir desculpas. Dizer olá, sugerir tentar de novo, dessa vez sabendo onde pisar. Mas aí não seria amor. Seria somente medo. O sentimento havia morrido, meu orgulho era forte demais pra deixar qualquer coisa se manter crescendo dentro de mim. O que restou era um ego ferido, o brio ofuscado por alguém mais machucado que eu. O meu desespero era simplesmente medo de ficar sozinho.
Mas eu decidi não ter mais medo. Mesmo que isso me custe a sanidade.
Eu era um homem sangrando enquanto tomava uma cerveja no balcão do bar. Um homem de prioridades. E, ao contrário de todas as minhas mulheres, o meu orgulho nunca me abandonou.
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noturno-vulgar · 6 years
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eu costumava chorar quando chovia
Eu não era muito dado a acordar cedo, normalmente. Mas havia algum tipo de magia no céu da manhã, principalmente depois daquelas tempestades que parecem que nunca vão terminar. É bonito olhar pela janela e ver as nuvens deslizando pelo céu, embaladas pelo vendo, abrindo caminho para o Sol. As colinas mais verdes, o céu mais azul. Era tudo uma questão de contraste. Você vê o céu cinza por algum tempo e se dá ao luxo de apreciar quando ele volta a ser azul. E no horizonte você vê mais nuvens indo embora, e do outro lado vê mais nuvens voltando. A bonança vem, mas acaba, vai embora, vem de volta. É cíclico, é previsível. Tudo se acerta um dia. E então sob um céu indeciso entre chumbo e anil, você se senta e acende um cigarro, o primeiro do dia. E sente o cheiro da fumaça e o cheiro do café quente e o cheiro úmido que o vento sopra fazendo a fumaça ao seu redor bailar para cima e para baixo. E você sorri. E não tenta tirar nenhuma lição de moral disso tudo. O cigarro vira só uma bituca incandescente, a caneca de café fica vazia, o céu azul é pontilhado por nuvens e você respira um pouco mais aliviado. 
Devagar você aprende a viver.
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noturno-vulgar · 6 years
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eu não aguentava mais me despedir
Virava rotina. Todos os dias alguém sentado dentro do trem. E eu, moribundo, na estação. Acenando pro vento. Pensando que, de alguma forma, a culpa era minha. A culpa sempre foi minha. Pensando se eu não era suficiente. E eu não era suficiente. Quem sabe eu não soubesse o que eu achava que sabia. Quem sabe eu não fosse o que eu achava que eu fosse. Eu era fraco? Eu era covarde? A culpa era minha? A dúvida me matava. Em relação a tudo. A todos. A todas. Por que as pessoas iam embora? Por que eu deixava? Por que eu as afastava? Por que eu não dava motivos pra alguém ficar? Eu era tão previsível, cinzento e sem graça assim? Por que as vozes dentro da minha cabeça não ficavam quietas um pouquinho só? Eu só queria pensar. Respirar fundo. Eu estava começando a ficar cansado daquilo. Eu só queria que alguém chegasse e batesse com a verdade na minha cara. Minha causa mortis seria o sincericídio. Mas eu não fazia objeções. Pelo contrário. Era o que eu queria. Eu queria poder não desconfiar. Eu não aguentava mais amores pela metade. Pessoas vindo até mim pra depois ir embora. Reabastecida a autoestima e o ego, todo mundo estava pronto pra encarar o mar da vida novamente.
E eu ficava lá. Acenando para o nada.
Quem sabre fosse o karma. Justiça divina. Eu, que já havia ido embora tantas vezes, experimentava de novo a dor de dizer tchau. Eu achei que dessa vez fosse pra valer, mas aparentemente eu errei de novo. Nunca é pra valer. Nunca é pra sempre. O meu pra sempre é um balcão de bar e um tanque cheio. 
O meu pra sempre sempre tem um fim. 
E ele dói mais do que eu gostaria.
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noturno-vulgar · 6 years
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Uma noite fria e eu sem blusa. Há quem veja loucura em sentir o vento gelado no peito, os pingos de chuva no rosto, a textura insípida da água descendo pela garganta, gelando cada átomo da alma.
mas almas tem átomos?
Eu voltara a me ver como um ser patético. Perambulando, moribundo, pelas esquinas do meu medo. O coração nem se dava mais ao trabalho de acelerar. Eu era rotina. Homens tediosos em empregos tediosos com vidas tediosas. Fumando a falta de paciência para com os problemas alheios. Mas por isso eu não era psicólogo. O mundo era entediante. Depressões, ansiedades, traumas, a minha arrogância me impedia de ver outros seres humanos. Eu via gado pronto para o abate. Eu me sentia acima daquilo tudo, um deus na terra, alguém que alcançou a iluminação espiritual depois de ficar muito tempo no escuro. E serendipismo havia se tornado a palavra preferida pra explicar a minha vida. 
E lá estava eu sem blusa numa noite fria. A neblina se dissipava, meu estômago parecia pesar duas toneladas de chumbo e arrependimentos. Eu era garras, era dentes, era latidos roucos e fungadas intensas. A violência era meu refúgio. A autocomiseração era como cocaína pra mim. Fazia minha vida se mover. Eu vivia pelo próximo momento aonde eu ia poder ser a vítima. Distorcia discursos, jogava o ego contra o superego, abalroava a paz em troca de me sentir menos humano. Eu me perdia nessa charada, nessa pegadinha, nesse enigma que era a existência. Um grande ponto de interrogação. A bala na agulha havia sido deixada de lado, mas até quando? Até a próxima crise, até a latente falta de esperança bater na minha porta, até todo mundo perceber quem eu sou e ir embora novamente?
Não há paz para os perversos. A justiça divina ainda me tem na sua mão esquerda, mas a ideia de carma me assusta. A turbulência sempre vem uma hora e eu não sei se eu ainda sou um bom marinheiro.
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