Tumgik
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   Já parou para pensar como é difícil ser um vampiro? Por mais que seja brutal e nojento, eles precisam se alimentar do sangue de outros seres. Não conseguem viver sem. Minha vida sempre foi muito tranquila e eu não esperava que um dia estaria ali, diante de outros membros da Tribo Massai, pronto para fazer o meu primeiro ritual da lua cheia.
   Antes de tudo, acho melhor eu contar como tudo isso aconteceu. Obviamente, eu já sabia que era descendente dos Massai, só não tinha todo o conhecimento a respeito dos rituais e de como me tornaria um vampiro. O que me salvava era a minha família, mas nem sempre eles se dispunham a explicar tudo o que eu precisava saber. Fui preparado quase que a minha vida inteira para esse momento, e ele estava chegando. Cada dia que passava era um aperto no meu coração, medo de não conseguir realizar o que todos os da minha família foram obrigados a fazer. Será que eu seria capaz de conseguir cumprir com o ritual? No meu quarto tinha um calendário e, nele, eu marcava cada dia, fazendo as contas de quanto tempo faltava para o grande dia. Vivíamos em uma fazenda, um pouco distante da cidade, e os rituais aconteciam muito perto de casa, então quase sempre dava para ouvir e ver um pouco do que acontecia ali, apesar de nunca me permitirem. Durante aquele último mês, meu cachorro tinha me feito muita companhia, eu sempre brincava com ele para poder me distrair e não ficar pensando que o dia estava chegando e, infelizmente, na última semana ele tinha sumido. Minha família sempre foi muito religiosa, eles levavam a sério essa coisa da tribo e eu nunca entendi muito bem, por mais que eu soubesse o que era o ritual, eles sempre me privaram de ver o ato de se alimentar, e eu teria que aprender na marra. Um dia antes do que mudaria a minha vida, consultei a minha mãe. Pedi a ela dicas a respeito do ritual e ela, como sempre, só disse que eu ‘’tinha que me preparar de todos os jeitos possíveis’’.
   O dia finalmente chegou, e meu irmão já vinha me avisando desde manhã que a gente iria partir para uma floresta ali perto de casa, onde aconteciam os encontros da tribo. Confesso que, por dentro, eu estava morrendo de medo, mas nunca fui uma pessoa de recusar uma boa aventura. Passei o dia todo deitado, encarando o teto e imaginando como a minha vida iria mudar depois daquele dia, como tudo que eu tinha conhecido iria se distorcer por causa desse ritual. E aquilo me agonizava cada vez mais. E na escola? Será que as pessoas iriam me tratar bem? Eu não sei, já estava perdido o suficiente em meus próprios pensamentos. A cada tique do relógio eu sentia uma parte do meu eu se esvair, até que a grande noite chegou. Meu irmão veio apressado me levar para o ritual. Ele vestia um robe que, depois fui perceber, todos eles usavam. Saímos de casa – era uma noite fria e a lua cheia se exibia no céu estrelado. Aquilo já estava me dando medo o suficiente, abracei os meus próprios braços e segui meu irmão até o lugar.
  Chegando lá, me deparei com um círculo e, no meio, uma fogueira; do lado dela, o lugar em que o derramamento de sangue provavelmente aconteceria. Passei por uma das coisas mais estranhas da minha vida. Imagine chegar em uma floresta, de noite, com várias pessoas que você nunca viu na vida. Todas elas encapuzadas e com robes que iam até os pés... O meu medo aumentou ali e eu pude sentir meu coração apertar e bater mais forte. Mas agora eu já estava ali, não é mesmo? Não tinha para onde fugir, e aquelas pessoas não me pareciam ser tão amigáveis a ponto de compreender a minha decisão caso eu recusasse um pedido daquele. Eu comecei a assistir cada um dos novos membros performar seu ritual, logo depois de uma cerimônia promovida pelo que parecia ser o líder deles. E finalmente eu tinha encontrado meu cachorro, e no pior cenário possível. Vi ele ali, caído e com uma marca de mordida no seu corpo. Me segurei muito para não ir embora ou então para não deixar as lágrimas escorrerem pelo rosto – agora não tinha mais o que fazer a não ser engolir. Eu sentia que a minha hora estava chegando, meu coração batia mais acelerado a cada segundo que passava, e era notável o suor descendo pela minha testa enquanto eu assistia aquelas cenas.
 Quando eu já estava me acostumando com aquele odor fétido de sangue, fui recepcionado por um empurrão nas costas e me deparei com um cervo amarrado em dois pedaços de madeira, que pareciam forte o suficiente para segurar o animal. Era a minha hora, e aquilo me deixou agoniado. Pensei em voltar atrás, mas quando me dei conta, todos eles estavam em minha volta e me encarando ali, nunca me senti tão fraco e desprotegido como eu me senti naquele ritual. O único som que tinha naquele lugar era do fogo estalando da fogueira e alguns animais que passeavam pelas sombras das árvores. Não tinha para onde fugir: meu destino já estava traçado. Não queria descobrir o que iria acontecer comigo se eu me recusasse. Tinha que matar aquele pobre e inocente animal com uma mordida. Eu só ficava ali, parado, imaginando o gosto daquele cervo que estava agonizando ali. Mal sabia ele o que o aguardava.
  A hora era aquela, e não tinha mais jeito. Troquei alguns olhares apavorados com o meu irmão, que ali estava totalmente camuflado. Encarei todos em volta de mim, dei uma última olhada no céu estrelado e, por fim, voltei a atenção ao cervo, com o estômago embrulhado só imaginar aquela cena. Me aproximei do animal. Cada passada minha parecia que demorava minutos, devido a todo o estresse e aflição que percorria o meu corpo. Cada gota de suor que descia da minha testa parecia demorar horas para percorrer o seu caminho. E ali eu me vi, de frente para o animal que não parava de fazer barulhos e se mexer sem parar. Eu tinha que fazer aquilo.
  O animal fedia, mas isso eu já não consigo te dizer se era o cheiro dele ou o cheiro de sangue que espalhava pelo lugar. Foi muito difícil tomar uma iniciativa, senti cada músculo do meu corpo estremecer antes de finalmente mexer a mão. Tive que segurar a cabeça dele porque ele não parava de tentar fugir daquilo. Hesitei quando aproximei meu rosto daquele pescoço esticado e, totalmente suado, sentia que meu coração estava prestes a sair pela boca. Respirei fundo e fechei os olhos, e então mordi aquela pele com toda a força que eu tinha. Aquilo foi muito bizarro, para não dizer medonho, o animal soltou um grito tão agudo que quase me deixou surdo. Ele tentou fugir, mas não conseguia por estar já amarrado. Agora minha boca já estava presa nele, e eu nunca senti meu coração palpitar tão forte, aquele ato pareceu durar muito mais do que realmente durou. Senti sua pele rasgar, minha língua envolta com aquele couro peludo e dourado, pouco tempo depois – e com um pouco mais de força no maxilar –, eu finalmente senti o sangue do animal invadir minha boca. No começo foi nojento, imaginar que aquilo era um sangue de um animal qualquer, mas comecei a perceber o quão bom era aquilo. Todo aquele medo, aquela palpitação no coração sumiram quando eu engoli o sangue do cervo, que agora já se encontrava quieto e imóvel ali entre os postes de madeira. Larguei o corpo do animal, já morto e olhei para trás com a boca pintada de sangue. Minha respiração estava ofegante e até hoje eu não sei dizer se era por nervosismo ou por satisfação. Talvez os dois.
 Eu me sentia renovado, por mais que aquela cena fosse totalmente absurda para qualquer um fora da tribo. Parecia que eu finalmente tinha me encontrado... e a sensação era ótima. Todos os meus medos, ansiedades e preocupações a respeito do ritual haviam sumido, sendo substituídos por uma sede de sangue. Já não tinha mais medo de me alimentar, pelo contrário: queria me alimentar. Precisava me alimentar. Adquiri uma maior compreensão acerca do que a minha família vinha fazendo e como aquilo era realmente bom. Me conectei à Tribo Massai, finalmente.      Me aproximei do meu irmão, que não conseguiu esconder um sorriso de satisfação. Quando todos terminaram o ritual, o líder falou algumas palavras. Ele parecia recitar um trecho bíblico da nossa tribo ou alguma algo do tipo. Eram coisas que eu precisava aprender ainda. Saudamos uns aos outros e, finalmente, fui embora daquele lugar. Acompanhado do meu irmão, voltei quieto naquela madrugada fria e escura. Um conflito psicológico: eu tinha mesmo matado um cervo por causa do seu sangue? Cara, que coisa nojenta… e prazerosa. Parece que decretei o meu destino.
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