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cinemadecupado · 3 years
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A dança libertadora de Gloria (2013)
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A vida não vem com manual de instruções. Tampouco é tão doce quanto receita de bolo. Mas há quem diga que o principal ingrediente é não desistir de ser feliz apesar das mazelas da rotina e do correr do tempo. No filme de 2013 do chileno Sebastian Lélio, Gloria (Paulina Garcia) seria uma dessas pessoas que ainda enxergam a vida sob uma ótica liberta e prazerosa, mesmo quando tudo parece fluir em direção contrária, rumo ao inevitável. Gloria, que nomeia o filme, vive a vida como alguém que acabou de descobri-la, com uma vivacidade que há de inspirar mulheres e homens que estão na chamada terceira idade. Divorciada há mais de 10 anos, a mulher segue uma vida solitária, na qual mantém um emprego tedioso, precisa lidar com as crises do vizinho e sua única companhia durante a noite é o gato do andar de cima que invade sua casa. E, no entanto, consegue se manter esperançosa em busca de mais um grande amor entre as idas aos bailes de dança.
Durante uma das saídas, Gloria, então, conhece Rodolfo (Sergio Hernandéz), que à primeira vista parece preencher todas as lacunas dessa nova fase. No auge dos seus 58 anos, a protagonista leva o espectador nessa sua aventura romântica marcada por clichês, decepções e por uma liberdade espiritual que a encoraja a descobrir o mundo. Sob a minuciosa direção de Lélio, atenta aos elementos de mise-en-scene e seus simbolismos para além dos designados, o espectador se compadece da trajetória da personagem logo nos primeiros minutos de longa, nos quais avista-se Gloria sozinha no bar do baile. Com uma câmera distante e de aproximação lenta, que captura, primeiramente, o corpo de costas da personagem no meio de um mar de pessoas, é como se o diretor estivesse respeitando a sua introspecção momentos antes de assumir uma postura destemida atrás do seu objetivo. 
Logo depois, o plano fica mais fechado e coloca um holofote no deslocamento da protagonista, de modo a direcionar o olhar sempre para ela e seus pensamentos, mesmo que ela esteja sempre na companhia de uma ou cem pessoas. Deste momento em diante, é o espectador se sente cúmplice com um ombro amigo e torna-se impossível virar os olhos para a honestidade descortinada. Esse tom perpetua todo o restante do filme, que assume o compromisso de ouvir, compreender e, acima de tudo, conhecer Gloria sem nenhum tipo de julgamento ou desonestidade. O espectador aceita toda a sua complexidade, desde a inconstância emocional até as suas características mais honrosas. A todo momento, Sebastian transita entre planos médios e americanos, raramente utilizando-se de movimentos de câmera e close-ups, a fim de capturar e imprimir as verdadeiras emoções da personagem que surgem na tela de forma espontânea e autêntica em relação a si mesma, as pessoas com as quais convive e o espaço que habita. 
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Ao dar essa atenção a personagem, o diretor materializa Gloria no mundo, tornando todos os seus desejos e pensamentos palpáveis não só no seu próprio universo como também no mundo e evidenciando que uma mulher desta idade ainda existe plenamente e é digna de apreço. É um ser humano que tem um passado assim como também possibilidades de um futuro no mesmo lugar que sempre esteve. Ela está presente e não tem intenção alguma de passar despercebida.  Lélio aponta de forma muito coesa e despretensiosa que, embora Glória preencha alguns pré-requisitos do grupo, como ser avó e ter problemas na vista, ela também não precisa ser definida pelas pseudo-limitações da idade. Ela dança, ela trabalha, ela tem curiosidade pelo novo e ela quer amar, transar, se entregar novamente a outra pessoa, mesmo que para isso ela tenha que se decepcionar.
É como se ela estivesse passando por um novo processo de redescoberta e autoconhecimento, algo estupidamente relacionado somente à juventude. Quando se envolve com Rodolfo, um homem graciosamente desengonçado, a personagem expande o seu espírito livre e se entrega ao desconhecido. Um dos primeiros encontros do casal, depois de terem se conhecido no baile e terem transado na primeira noite, é em um parque de diversões onde a dupla passa a tarde pulando de bungee jump e brincando de paintball. Deste modo, o filme contraria a noção de que envelhecer é sinônimo de que as mulheres, principalmente, precisam se inserir na caixinha dos padrões: ser avó, se aposentar, sentir saudade dos filhos, viver de encontros semanais com o mesmo grupo de amigas. Em suma, não se arriscar. 
É bonito ver como a personagem vai se despindo cada vez mais, de forma extremamente vulnerável e crua, conforme vai tendo mais uma chance de viver a sua vida ao extremo. A presença de Gloria é sempre latente e Sebástian não deixa nunca escapar a oportunidade de registrá-la em toda sua potencialidade. O que deve ser uma das cenas mais marcantes do filme é quando no hotel, Gloria, cansada de insistir para que Rodolfo imponha mais limites entre ele e sua ex-mulher que liga constantemente, decide ir embora e é impedida pelo parceiro. Na esperança de que ele não a deixasse ir embora, Gloria espera que ele toma uma última atitude, o que acontece quando ele a chama momentos antes dela abrir a porta. A sequência, embora tenha um teor de clichê, se desenvolve de maneira muito honesta com a trajetória dos personagens. 
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Ambos têm bagagem, já passaram por poucas e boas e, querendo ou não, estão em território novo. Tudo é diferente nesta idade, principalmente o amor e o sexo por terem que se adaptar às mudanças que eles não têm controle: do corpo físico e emocional. No chamado de seu nome, Gloria fica completamente despida na frente de seu parceiro, como se suplicasse ao mesmo tempo que o desafia a enxergá-la exatamente como ela exatamente é e se apaixonasse por isso. É isto o que sou e tenho para oferecer. Eu estou aqui, sem barreiras, sem medo. Não é muito, mas se vier comigo teremos muito a viver. O corpo é a porta de entrada para algo muito maior e engrandecedor que o sentimento sexual. É a imposição de sua presença.
É interessante pensar como o filme não recua na hora de mostrar a verdade nua e crua. Literalmente. Apesar de normal, a imagem de um casal desta idade exibida de forma tão exposta, sem pudor, é chocante aos olhos do conservadorismo ainda atual. Quantas vezes o cinema mostra uma mulher nesta idade completamente nua? Pois é, dá para contar nos dedos. Ainda mais se tratando de uma mulher que não necessariamente tem algo a dizer, que tenha vivido uma grande tragédia ou transformado o mundo. Ela é normal. E é esse realismo, com todas as suas falhas, que aproxima a normalidade dessa vida do público. Em Gloria, portanto, o jogo parece virar e a vida sexual dos dois é representada de forma corriqueira e natural, como é quando um casal está a se conhecer. Há as inseguranças do início, como quando Rodolfo se envergonha da necessidade de usar uma cinta, mas há também a excitação. 
Debruçado na mesma linguagem realista e humanizadora, com planos médios quase que métricos, o diretor retrata os encontros sexuais de forma que eles preenchem a tela, assim como estão preenchendo a alma dos personagens naquele momento, evidenciando a intimidade entre os corpos, sua movimentação e toque. Tudo na obra está completamente a serviço da personagem e somente dela. Nem mesmo os detalhes sobre outras figuras são tão relevantes. O que importa é como Gloria se relaciona com as figuras e espaços da sua vida e o que eles tiram e exaltam dela, quais sentimentos eles a fazem sentir. As insinuações são feitas sutilmente, o que provoca o espectador a estar sempre atento aos maneirismos, posturas e emoções da personagem. 
Apesar de ser considerado por muitos como um erro de roteiro, pois não há exatamente um desenvolvimento, a inserção de um pano de fundo sócio político chileno reflete essencialmente na construção da personagem. É interessante pensar como uma mulher como Gloria, de classe média contemporânea e que não passou por nenhuma grande tragédia na vida, transita por este mundo pautado por reivindicações políticas por parte de uma nova geração em um país que enfrentou governos ditatoriais - durante o qual a personagem estaria no auge dos tempos joviais. Durante um almoço, ela e um grupo de amigos discutem a situação atual do Chile e como as coisas não são como antes, interferindo no patriotismo e amor ao local. Em um dado momento, um dos amigos afirma: “Precisamos olhar para os jovens”. Esse paralelo, apesar de secundário, consegue elevar a personagem.
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Além de afirmar esse olhar da protagonista para os sentimentos da juventude, dessa constante manutenção da jovialidade da vida, essa relação simboliza que, não importa o momento da vida, sempre haverá algo para lutar, seja ela por uma conquista pessoal ou coletiva. Há sempre a busca por uma idealização que talvez nunca chegue, mas que a perseverança não a deixa parar de seguir pelo caminho da manifestação - que propositalmente, tal qual a vida, é muitas vezes representada pelos novos. Se for ainda analisar para além de um simbolismo mais poético, pode-se entender que o diretor buscou apontar como as atitudes militantes diante do mundo atual permitiu a revolução sexual, evidenciada pela personagem sempre que esta tem a liberdade de dormir com quem quiser, quando quiser e não ser julgada por isso. Foi, além de tudo, uma maneira perspicaz de ainda reafirmar, como dito acima, o tempo-espaço de Gloria dentro de um contexto recente.
No decorrer da trama, o conceito de juventude e suas expectativas são constantemente colocados em paralelo com o realidade atual da personagem, mesmo que outrora mais sutil. Enquanto Rodolfo se declara para Gloria com uma declamação de um poema lido em um livro, o namorado da filha manda um email apaixonado. Apesar de reconhecer que não compreende o mundo da internet, a personagem se volta apenas para o sentimento expressado em total idealização do romântico. Mais uma vez, o roteiro, além de contestar a ideia de que não existe novos amores fabulosos na terceira idade, afirma que algumas coisas sempre serão as mesmas, independente de forma ou idade. Na mesma moeda, a música do filme também é aliada na construção do roteiro e, sobretudo, da personalidade da personagem. 
As canções clichês de romance marcam a tônica da trilha sonora do longa, o que acaba por evidenciar essa incessante idealização do amor romântico. Seja em casa ou dentro do carro, Gloria sempre parece traçar uma ligação com as letras mais tristes e melosas que estão tocando no momento da rádio. Elas representam a sua vontade de ter uma segunda chance de viver um grande amor, um que corresponda às suas novas perspectivas de mundo após ter vivido um casamento que não deu certo e com certeza não foi o que ela havia imaginado. Ademais, a música ganha um significado ainda mais potente quando manifestada nos passos de dança. Convicta, quando envolta pelo ritmo da música, a liberdade toma conta da personagem, como se o controle que ela tem no que diz respeito ao futuro que almeja ganhasse vida e se deslocasse com confiança, mesmo que por dentro o medo da solidão e da desilusão estivessem presentes. 
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Através da dança, ela consegue manifestar tenazmente a libido, a sensualidade, a felicidade, o prazer. A dança a faz sentir viva e por isto capaz de viver nos seus termos: ao mesmo tempo com o controle e a liberdade dos passos da coreografia. Essa dualidade entre a entrega e o controle do desenrolar dos próximos capítulos estão em confronto o tempo inteiro. Se no início há essa tentativa - impossível - de dominar as ocorrências da vida, enquanto simultaneamente se dispõe a encarar peripécias, ao fim a personagem já assume uma postura mais desprendida ao perceber que é preciso afrouxar os nós e deixar a vida seguir o fluxo que lhe é determinado, de modo a se entregar às situações sem ter um manual de quais posturas assumir.
 A personagem percebe que, no fim, não adianta nada o pragmatismo na conquista das suas expectativas: por mais que ela decida ir aos bailes, dançar com um homem por achá-lo um bom candidato para suprir os seus desejos, têm coisas na vida que estão fora de qualquer controle e que não dizem a respeito a ela, vide os problemas de Rodolfo com as filhas e a ex-mulher, motivo pelo qual eles se separam. Afinal, é uma via de mão dupla. Quando ocorre o término, Gloria começa a se conscientizar de que o romance é uma via de mão dupla e não há assertividade capaz de ir contra a imprevisibilidade da vida, desprendendo-se das projeções, grandes planos ou controle do futuro e de atitudes alheias: o instante do momento passa a valer mais do que as consequências para o futuro. Ela está livre para viver o que surgir no seu caminho, sem grandes expectativas, com a certeza de que às vezes a melhor solução é abrir mão do que não soma. 
Entre as sequências finais, duas grandes cenas se destacam e representam muito bem essa corda bamba que a personagem tenta se equilibrar. A primeira, um dos poucos momentos que a fotografia assume uma ousadia psicológica com tons mais azulados, exibe Gloria, na companhia de um homem que conheceu em um cassino, a girar em um brinquedo infantil. A câmera giratória acompanha os seus movimentos, sempre com enfoque no semblante, exprimindo esse descolamento da personagem na vida. Ela se sente como se estivesse flutuando pelo chão, com braços abertos pronta para voar. É uma forma poética de dizer que ela está se desprendendo de tudo. Depois desse momento, todas as atitudes da personagem não parecem mais tão calculadas. Ela cede às suas emoções e age de acordo com elas, independente do resultado. Com raiva, ela decide atirar com a arma de paintball no ex-namorado. 
Essa linguagem cinematográfica, no entanto, só é potencializada pela interpretação da atriz Paulina Garcia. Com seus óculos de grande armação, que intensifica o penetrante olhar dos seus pequenos olhos, Garcia consegue de forma ímpar dizer muito ao mesmo tempo que nada diz. Seu silêncio é grandioso e com apenas o controle feroz das suas expressões faciais consegue transparecer as emoções mais íntimas e vigorosas da personagem. Em uma das cenas mais românticas do filme, na qual Rodolfo lê um poema para Gloria e já citada acima, a atriz, evidenciada pela câmera do início ao fim da sequência em um plano americano, desnuda-se sem temer diante do espectador, que se depara com um semblante expressivo do turbilhão crescente de emoções que a personagem vive. Não à toa em nenhum momento é mostrado o rosto de Rodolfo durante a recitação. Afinal, o que mais precisava ser visto além da entrega vulnerável desta mulher que, depois de tanta busca, está se entregando à sua primeira faísca de esperança? 
Na companhia visceral de Paulina Garcia a trajetória de Gloria se torna revigorante no tempo-filme do espectador. Diante da grande tela, o espectador acompanha o crescimento oscilante desta personagem. Gloria começa presa com um sonho idealizado de vida que paradoxalmente tenta obter desprendidamente e termina com a maior revelação que qualquer um, arrisco dizer, poderia ter, apesar das decepções vividas. Ao som de Gloria, na versão original italiana na voz de Umberto Tozi, a personagem percebe que dançar sozinha às vezes é a chave para ser feliz. O parceiro de dança, logo, é apenas um subcapítulo na vida que vem a seguir. Talvez, na próxima vez que alguém a perguntar “Are you always this happy?”, ela possa, enfim, dar uma resposta diferente da que deu para Rodolfo. 
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cinemadecupado · 3 years
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A vivacidade da velhice feminina no cinema latino-americano
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Qual o limite da longevidade? Se for pensar em termos teóricos, estudos apontam para uma média entre 60 e 80 anos na América Latina. Na prática, a realidade é outra, principalmente pelos olhos de uma mulher. Diante de uma sociedade misógina e conservadora, poluída por ideais que servem apenas para inferiorizar o ser humano a serviço de uma cultura capitalista e homogênea, as mulheres a partir, digamos, dos seus 50 anos são esquecidas em sua plenitude da sociedade. Suas presenças tornam-se limitadas à imposições sociais, como ser avó, ter um casamento duradouro, sofrer com a menopausa, preparar a aposentadoria, e suas instâncias básicas enquanto seres humanos pensantes, como desejos, sonhos e pensamentos, são descartados. Não é uma mera coincidência, portanto, não haver um número satisfatório de obras que representem as diferentes facetas desta fase da vida feminina. Contudo, algumas obras voltaram o seu olhar para este rico momento, quase como um renascimento feminino diante de todos os obstáculos físicos e sociais, uma reinvenção do que é ser mulher e humano, e se propuseram a explorar este universo: o dominicano Dólares de Areia, o chileno Gloria, o paraguaio As Herdeiras e o brasileiro Aquarius são alguns desses exemplos que ousaram e criaram roteiros, com certos simbolismos, que elevam as particulares de cada personagem, mostrando que não há um jeito certo de viver a meia ou terceira idade. Em comum, estes filmes trataram de utilizar os significados simbólicos e literais da dança e do sexo/intimidade. Desde que a sociedade entende-se como tal, há uma construção em torno do sexo que o coloca enquanto transição da inocência para o amadurecimento, de uma moeda que invalida o valor de uma mulher. Quando, então, a prática sexual é iniciada, ela não serve aos desejos femininos: é apenas um caminho para reproduzir os padrões machistas: engravidar, ser mãe e oferecer prazer ao homem. Uma mulher que assume uma postura contrária da imposta, é logo silenciada e difamada. Afinal, está ousando de uma liberdade que não lhe pertence. É um julgamento preto no branco, ponto final. Nos filmes citados acima, esse jogo se inverte e o sexo ganha outros significados sociais e individuais. São ferramentas de conhecimento próprio e de empoderamento. 
Em Aquarius, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho, que aborda a luta de Clara contra o sistema mobiliário em prol da preservação do prédio no qual mora e é visto como monumento histórico, a personagem de Sônia Braga é independente em muitos sentidos da palavra. Sua trajetória desde o início é marcada por uma irreverência e consciência de si, de modo que ela sempre defende seu lugar na sociedade, seus pensamentos e desejos. Contra a maré do moralismo barato, Clara é uma mulher que abraça a sua sexualidade e não tem a mínima intenção de abandoná-la. Sua libido é uma das suas características que refletem na discussão contemporânea acerca da liberdade sexual feminina. Em uma das cenas, a personagem convida um garoto de programa para ir à sua casa, uma atitude que por si poderia ser vista sob maus olhares. Em controle total do seu objetivo para a noite, Clara não perde tempo e faz questão de deixar claro quem estará dando as cartas naquela noite. Sentados no sofá, os dois conversam rapidamente antes do início do sexo e suas palavras definem o tom da cena. Com uma taça de vinho na mão, símbolo da liberdade dionisíaca, ela, em total compreensão do seu poder enquanto contratante do serviço, diz “Eu quero que você vá para embora”, surpreendendo o prostituto. Essa frase é um indício da vantagem da personagem sob o outro, o que inverte as noções predispostas do ser mulher e ser homem. Na maioria das vezes, é o homem que tem o poder de comprar o prazer da mulher por meio da prostituição, seja ela de luxo ou não, de modo que pouco fala-se da situação inversa para além dos questionamentos válidos sobre o efeito da profissão em si. Logo depois, Clara o desafia ao dizer “Eu quero que você me coma”, reafirmando a ideia de que o homem esta noite é apenas um joguete em sua mão. Vestida em apenas uma blusa branca, ela senta em seu colo para iniciar o coito que é representado de forma muito realista e coerente para a idade dela: ele cospe em sua mão para esfregar no órgão genital, criando a lubrificação que o corpo feminino já não produz com tanta eficácia. Apesar de passar despercebido por muitos, este detalhe atenta para o fato de que, apesar das dificuldades corporais oriundas do envelhecimento, nada há de impedir que ela suprima o seu desejo ao mesmo tempo que reafirma a sua idade, normalizando-a e evidenciando uma vivacidade que muitos relacionam apenas com a juventude. 
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Em um dado momento, o jovem tenta acariciar os seios de Clara, que o impede direcionando ao seio esquerdo por conta de uma mastectomia. De forma muito natural e honesta, a cena mostra que Clara está confortável em seu corpo e a escolha de não exibir suas cicatrizes não é um ato de fraqueza ou vergonha, mas sim de privacidade. É algo que apenas diz respeito a ela e em nenhum momento diminui a sua feminilidade, algo que nesses casos é constantemente invalidada. Pelo elemento do sexo, que é apresentado sem nenhum teor íntimo, o roteiro constrói uma personagem que usufrui do seu direito de liberdade e exalta a personalidade desta mulher que é independente, com fortes opiniões sobre o mundo ao seu redor e com controle total de diversos aspectos da sua vida que para muitas é negada. Aqui, o sexo é um elemento que contribui para o paralelo entre o controle pessoal e coletivo por parte de Clara. Já em Gloria, cuja direção é assinada por Sebastián Lelio, o sexo tem uma conotação um tanto quanto diferente, embora ainda caminhe na linguagem libertária. No auge dos seus 58 anos, Gloria é uma mulher que, divorciada há mais de 10 anos, segue uma vida solitária e, no entanto, consegue se manter esperançosa em busca de mais um grande amor entre as idas aos bailes de dança. Uma noite, a personagem conhece Rodolfo, com quem começa um romance marcado por clichês, aventuras, decepções e, acima de tudo, entrega. Uma das cenas mais marcantes da relação dos dois e que reflete muito essa postura destemida da personagem, que na primeira oportunidade se aventurou em bungee jumps e paintballs, acontece em um quarto de hotel durante uma viagem do casal. Cansada de insistir para que Rodolfo imponha mais limites entre ele e sua ex-mulher, Gloria desiste de ir embora quando o parceiro assume uma atitude mais assertiva. Assim como Clara, visto que a reação do homem foi por conta da sua imposição, Gloria se sente validada ao ter seus sentimentos respeitados e assume também total controle da situação. De frente para ele, a mulher fica completamente despida, com todos os efeitos do tempo no seu corpo a mostra, como uma reafirmação da sua forte presença enquanto uma mulher com quase 60 anos. A ideia que transpassa pela cena é de súplica ao mesmo tempo que é de uma entrega extremamente empoderadora. 
A personagem desafia o parceiro a enxergá-la exatamente como ela é, sem mais nem menos, pois seu corpo, sua alma, é tudo o que ela tem a oferecer e são entradas para algo muito maior que ambos podem viver. A sexualidade em si torna-se secundária e oferece espaço para uma intimidade, para um desejo de estar com o outro não só fisicamente como espiritualmente. Diferente de Aquarius, o filme de Lelio aborda a naturalização do corpo e o controle sobre o próprio corpo a partir de um outro viés, embora também baseado no realismo. Sem simbolismos poéticos, a escolha de não exibir naquele momento uma parte do corpo de Clara mostra, de forma prática, que ter conhecimento daquilo seria uma exibição sem propósito, pois o encontro era apenas carnal e poderia ser alcançado sem que ela tivesse que despir suas intimidades. Em contrapartida, a poesia do filme chileno é sutil e ao mesmo tempo grandiosa: o corpo nu da personagem ecoa o descortinamento de quaisquer cortinas entre os dois; é uma quebra das barreiras emocionais que pudessem entrar entre os dois. Em As Herdeiras, o desejo sexual já é explorado por uma via ainda menos explorada no cinema e na vida real: pelo ato da masturbarção, ainda visto como um tabu. Chela, interpretada por Ana Brun, é uma mulher provavelmente na faixa dos 60 anos que precisa reinventar a sua vida quando sua parceira de anos é presa por acúmulo de dívidas. Para conseguir arcar com as demandas financeiras, ela, por conta de uma observação de uma amiga, vira taxista e em durante uma das tardes de trabalho conhece a jovem Angy. As duas logo se conectam e o vigor da jovem começa a influenciar nos interesses e sentimentos da mais velha. Em uma das cenas, logo após alguns momentos de tensão sexual, como quando Angy ensina Chela a tragar um cigarro no carro, de modo que as duas trocam olhares em um clima sensual atribuído ao fumo, a mais velha se masturba antes de dormir. O ato, em sua primeira instância, é uma forma de reconhecimento da libido, que é despertada por esta nova relação com a qual Chela percebe que ainda tem desejos que, na correria da vida, foram esquecidos no meio do caminho. É como se Angy fosse um espelho de Chela que constantemente a faz relembrar de quem ela já foi um dia e que, se ela ainda é capaz de sentir certas emoções, é sinal de que ainda há tempo de viver. Além disso, a masturbação, embora seja um reconhecimento direto da sexualidade da personagem, é uma forma também que o roteiro encontra, implicitamente, de mostrar como a personagem é reprimida, tendo que recorrer a este ato solo porque ainda tem amarras que a impedem de agir sobre essas vontades que estão retornando. 
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Ao mesmo tempo que há a ânsia, há inseguranças que foram acumuladas com o decorrer da vida e não são tão fáceis de serem descartados. A linguagem corporal da personagem reforça ainda mais essa noção: sentada, com uma luz quente no canto da cama acesa, em uma posição retida de costas para a câmera. É um retrato do desconforto, que fica claro que não é algo que ela performa com frequência, e da sensação de inferioridade com relação à Angy. Afinal, ela se enxerga como uma senhora que nada terá para oferecer a esta jovem. é uma senhora e, portanto, não terá nada a oferecer para esta jovem. Com todas essas nuances, o simbolismo da masturbação é totalmente ressignificado para além do sentido relacionado à descoberta do seu corpo na adolescência e da libido excessiva durante grande parte da juventude e início da fase adulta. Neste filme, a performance masturbatória evidencia que a personagem, apesar do medo, está disposta a reconhecer o seu corpo e todas as sensações que transpassam por ele. Assim como os jovens, as mulheres na terceira idade precisam compreender, novamente, o funcionamento do seu corpo e qual a melhor forma de lidar com ele. É como um renascimento, um despertar de uma vivacidade que está morta dentro dela. É o primeiro passo para ela ir ao reencontro de si mesma e, embora ela não consiga se entregar a ponto de praticar o coito, já é o bastante para que ela comece a ver o mundo a partir de novas perspectivas, de impulsos que ainda vão permitir que ela viva de forma plena os anos que ainda lhe restam. Ela sabe agora que é capaz de sentir como qualquer ser humano, independente de idade. Distante da representação de todos os outros três filmes, o dominicano Dólares de Areia, que aborda a desigualdade social do local por meio de um relacionamento homoafetivo, se debruça sobre uma sutileza e poesia e o sexo abre espaço para uma intimidade que se manifesta para além do encontro literal dos corpos. Juntas, a jovem Noemi e Anne, uma francesa de bastante idade pertencente da classe alta, mantém um jogo de interesses: solitária, a mais velha contrata os serviços de acompanhante da jovem e acaba se apaixonando por ela, mesmo sabendo que Noemi não necessariamente retribui o sentimento. 
Durante todo o filme, no entanto, há detalhes que evidenciam sentimentos que permeiam o envelhecimento, principalmente com relação a solidão enquanto ainda há o desejo de se ter alguém ao seu lado para criar novas memórias. Entre as cenas, como elas nadando juntas no rio, caminhando pela praia ou andando de moto abraçadas, algumas se destacam pela delicadeza e pela potência emotiva que carrega. No quarto, Anne, completamente nua, filmada de costas, evidenciando a fragilidade de seu corpo, deita no colo de Noemi, que começa a fazer carinho no seu cabelo. Para além do diálogo, no qual elas comentam sobre cansaço e sair para o centro, a cena mostra como Anne se sente confortável ao lado da jovem e que, apesar da diferença de idades, não tem inibição alguma em mostrar o seu corpo como ela é. Uma intimidade que vale para Anne muito mais do que qualquer encontro sexual. É o fato de ser tocada com carinho, de se sentir segura ao lado daquela pessoa, de ter alguém com quem confiar as banalidades do dia, que impregnam o seu corpo com um frescor de vida e paixão que anulam, nem que seja somente por alguns momentos, a constante solidão da velhice. Ela se sente vista pela única pessoa que ela quer que a veja e, por isso, não importa se o espectador não está vendo por completo. É algo que pertence somente a elas duas. A relação das duas o tempo inteiro é pautada pelo primor dos detalhes e suas simbologias para além do que é dito explicitamente. Quando elas estão em um lago, sozinhas, há uma beleza em ver as duas compartilhando a vida, compartilhando elas mesmas. As duas entram no lago de mãos dados, como um ato de carinho e convite para viverem momentos simples da vida. A intimidade é representada a alegria, confiança e reconhecimento enquanto ser humano que Anne vive com a jovem. O lago, junto a esse nado compartilhado, também incita certas simbologias que fortalecem essa troca pessoal entre duas, como a imagem de renovação e paz que naquele espaço ainda é de direito completo de Anne. Elas nadam como se não tivessem nenhuma preocupação no mundo, a não ser permitir que elas vivam esse momento em todo seu esplendor sem as censuras da vida real com relação a elas serem um casal de uma idosa e jovem que vende a sua companhia.
Assim como o sexo/intimidade, a dança promove diferentes perspectivas sobre um mesmo assunto. Enquanto uma atividade pautada no movimento, a disposição do corpo pode exprimir a ideia de liberdade, controle, insanidade, autoconhecimento, sensualidade e assim por diante. Na maioria dos filmes analisados, a dança é inserida mais de uma vez com o mesmo propósito de retratar as nuances da personalidade de cada personagem. Em Aquarius, Clara, sozinha em casa, coloca Roberto Carlos para tocar e começa a dançar sozinha, de forma lenta, crescente e serena. Considerando todo o background da personagem, cujo alguns elementos foram citados acima, a movimentação mostra como ela se sente em paz com a sua companhia e não tem uma necessidade de ter alguém constantemente ao seu lado. Sua presença, enquanto mulher no auge da sua terceira idade, é suficiente para ela mesma, para sua felicidade, e quando há um desejo maior, como transar, há sempre outros meios para obtê-lo. Além de potencializar essa individualidade, o fato dela estar dançando ao som de uma música antiga pontua ainda mais a conexão que ela tem com o seu passado, com a sua história, com momentos que a fizeram quem ela é. Ela não anula o que já viveu, pois é preciso olhar para trás para continuar a transformação enquanto ser humano, aprendendo com os erros, acertos e vivências gerais. Aqui, de forma menos explícita do que a luta da personagem em manter uma construção histórica de pé como resquício de um tempo que já passou, esse elemento do roteiro remete ao traço revolucionário da personagem: assim como ela resiste pela preservação histórica do seu bairro, ela também se resigna a acharem que velhice é sinônimo de dependência, acomodação e decadência. Mais do que nunca, pode ser um momento de valorizar e evoluir quem se é. Afinal, assim como na contemporaneidade, só há crescimento existe se houver respeito e reconhecimento do passado. Em As Herdeiras, a dança tem o mesmo teor de leveza que no brasileiro. 
Apesar de ser uma cena rápida, que passa despercebida por olhares distraídos, quando Chiquita, que será presa, dança no quarto há uma referência à despreocupação da personagem. Ela dança porque está em paz, porque não tem medo e, mais importante, porque ainda está viva. O fato dela ir presa não irá anular isso e ela enxerga esse revés como apenas mais um contratempo que faz parte da vida. É uma representação da sua personalidade desprendida, otimista e corajosa, que muitos acreditam que é esvaecida pelo tempo, como se apenas jovens pudessem ter o direito de arriscar, errar, aprender com o erro e ansiar por dias melhores e mais oportunos. Para Chiquita, sua dança é a esperança viva de que tudo irá passar e ela não precisa perder o bom humor, o olhar entusiasmo e o deleite pela vida por conta disso. No filme de Sebastián Lelio, a dança é um hibridismo das nuances exploradas nas duas obras. Se em grande parte do filme a arte era usada como uma forma de controle sobre a aquisição do romance e de representação da personagem, na cena final era é atribuída de um significado totalmente diferente. No meio dos convidados do casamento da filha da sua melhor amiga, Gloria, ao som da música homônima, lentamente vai se soltando no ritmo da canção, como se estivesse em um processo de libertação de todo o peso que carregou consigo durante todos os anos em busca de de um romance e do romance em si com Rodolfo. Dessa vez, ela dança sozinha e se sente completa. Ela percebe que não precisa necessariamente estar com alguém para sentir íntegra; sua presença basta para lhe dar esperança no futuro, desde que ela nunca se abandone e deposite a saída para a solidão necessariamente em um amor. Ela pode viver todas as aventuras que se propõe sozinha, com amigas e, se assim for, com um parceiro ao seu lado. É um momento libertador para ela.
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cinemadecupado · 3 years
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A imersão insalubre de Leviathan (2012)
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Perigo: Mar Aberto. O documentário experimental de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, Leviathan, lançado em 2012, é uma viagem crítica, etnográfica e sensorial pelo universo marítimo de pescadores de coletas comerciais em alto mar na Nova Inglaterra. Sem apresentações de rostos, nomes e arcos narrativos, o filme conduz o espectador de forma angustiante e incômoda sob os efeitos da uma câmera acoplada ao corpo (uma influência de Vertov), da fotografia quase que insalubre marcada por tons escurecidos em planos agitados e do som diegético, que amplificam a experiência de conviver com animais mortos,  imprevisibilidade das águas e ausência de qualquer conforto diário enquanto se encontram longe do mundo. Essa construção visual força o espectador a aguçar todos os sentidos para que tenha uma ampla noção da rotina desses trabalhadores. O filme é um convite para sentir na pele a relação natureza-máquina-corpo desses profissionais, para além da imagem reproduzida, e enxergar de forma crítica o impacto individual e ambiental desse serviço. 
Sob uma releitura técnica da linguagem documental, que vai contra as correntezas da narrativa clássica a partir do momento que o diretor se apropria de conceitos observativos e poéticos, em diversos momentos há a sensação de que o olhar, disposto em longos e vastos planos, é subjetivo com relação ao espectador, oferecendo a impressão de que quem assiste também faz parte do quadro. Afinal, quando acompanha-se a angústia, a correria, o cansaço e a força desse trabalho de forma quase que ininterrupta e extremamente pessoal (atenção para a cena em que assiste-se um pescador lutando contra o sono durante quatro minutos) reverbera a ideia de que, como aponta Bill Nichols, está sendo mostrado exatamente o que aconteceria se não tivesse uma câmera ligada, interrompendo a linha entre a representação do real e o real. É como se tudo estivesse acontecendo naquele exato momento com o seu corpo ali inserido. 
Isso faz com que a realidade do que é exibido seja esticada e exprimida em sua totalidade, em sua real instância de espaço-tempo, assim como defende o teórico André Bazin. Nesse momento, já foi explicitada a essência do filme: é uma experiência, e o espectador precisa absorvê-la em estado suscetível aos sentimentos que o filme vai evocar, sem que haja condução ou interferência - visíveis - de ferramentas externas. A vivência aqui é concebida com base em um equilíbrio entre as cenas de rotina e as de ambientação. Em dados momentos, antes de introduzir mais um dos afazeres desse cotidiano fordista, o diretor opta em colocar sequências filmadas imersas nas águas, das aves noturnas sobrevoando o navio, ou do bater das ondas, para que o momento seja plenamente compreensivo na sua potência imagética.  
É nesse contexto que as imagens, estabelecidas nas técnicas citadas acimas, trazem a sua poesia para o relato. O ali e agora de mais um dia (mecânico) dentro de um navio no meio de um mar - que se revolta à noite e parece se acalmar de dia - e todas as emoções que permeiam essas tarefas ficam em evidência. Ao entender o macro (meio) compreende-se o micro (as relações humanas e materiais), relacionando-os. O que o diretor oferece ao observador são, portanto, as imagens focadas em mise-en-scenes muito bem pensadas que mostram o todo com um olhar afinco para os detalhes, como sapatos, luvas, os cabos, os corpos dos peixes, que cabe ao espectador descobrir e entender o vínculo dos mesmos em sua nova significação. Nesse sentido, apropriando-se de termos de Serguei Eisestein, não há dominantes, por mais que pareça. Todos os elementos dependem um do outro para fortalecer o universo em questão quando colocados em contraste com os da cena anterior.  
A mecânica do filme é evidente. Não é que não possa ou não tenha nenhuma intervenção no que é capturado. A questão aqui é que a manipulação do diretor não é pejorativa, de objetivos ilusórios, mas sim para que as imagens em todos os seus elementos consigam falar tudo por si só. Cabe ao espectador treinar o seu olhar para que consiga capturar suas mensagens nos pequenos detalhes da cena. Assim como as cenas do ritmo de trabalho, como a dos pescadores limpando o chão repleto de pequenos bichos e plantas do mar espalhadas, dois momentos são ótimos exemplos da intenção de captura almejada pelo diretor: a do marinheiro citada acima e a da ave tentando fugir, presa a um caminho estreito. Em ambas, há uma atenção a esses elementos que ao fazerem parte do ambiente oferecem um sentido totalmente diferente à cena, que vai muito além do apenas reproduzir o dia a dia. 
Na primeira, o silêncio é ensurdecedor. A distante sonoridade do bater do relógio e do barulho da televisão são intensificadas pela postura quase que estática do marinheiro sozinho que, no fim de um dia de trabalho, falha na tentativa de ter o mínimo de lazer, pois luta para se manter acordado. Ao prestar atenção na ressonância auditiva e visual dessa cena, o espectador entende muito mais do que um mero fim de noite: ali está presente a personificação da exaustão, da rotina, da solidão. Assim como na cena do pássaro. A um olho comum, pode, sem dúvidas, parecer um momento descartável, mas ao capturar sob essa câmera, sem manipular os áudios ou cortes, o diretor já intervém com tamanha sutileza: o animal, nesse ambiente estreito e sujo, deixa de ser um mero animal perdido e se transforma em um marinheiro que quer voltar para casa, na interdição da humanidade na natureza, da exploração e assim por diante. O filme é extremamente potente na crítica e na forma que escolhe conduzi-la; a expressão do roteiro não deixa a desejar com relação às suas intenções. 
No entanto, pode-se dizer que há algumas tormentas no meio das águas da obra. Embora condizente em sua forma e em sua apreensão, o filme se transforma no que critica (rotineiro e exaustivo) depois dos primeiros 40 minutos - e olha que o filme tem apenas 87 -, e a experiência parece perder um pouco a sua força inicial. As imagens e a montagem seguem no nível ambicionado, sem dúvidas, mas, por serem um tanto repetitivas em suas aparições e gestos, mesmo com composições dos elementos dos quadros variadas, a atenção de quem vê corre o risco de ser perdida - principalmente se for considerado que o assunto é de interesse de poucos. O diretor até tenta, mais próximo do final, oferecer uma certa dinâmica ao, por exemplo, diferenciar com uma câmera parada e outra em movimento as tarefas dos turnos:  o pescador é filmado em planos abertos e parados organizando o deque ou cortando arraias ao meio, potencializando os movimentos, enquanto os noturnos são marcados pela câmera mais agitada e acoplada. 
Só que nessa altura já não adianta.  Trabalha-se aqui com a ideia de um voyeurismo que não se limita ao exibicionismo; é necessário a participação e imersão completa do espectador. Observa-se para sentir. Aquela experiência precisa também se tornar parte dele, nem que seja por alguns minutos. Essa idéia coloca em evidência a importância de um tempo-justo, nem pra mais nem pra menos. O ideal para transmitir aquela mensagem ou sensação. Ao prolongar essa experiência da forma que foi feita, faz com que o espectador se encontre físico e mentalmente cansado. A exigência intelectual e sensorial o leva a uma exaustão para além do necessário, de modo que todas as sensações anteriores se tornem inferiores ao que ele sente ao sair da sala de cinema/terminar a exibição. Ao focar na linguagem, direção e fotografia, sem considerar o limite da experiência-tempo, a obra por pouco não deixa a correnteza levar toda a intensidade emocional entre os seus grandes momentos e o espectador. 
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cinemadecupado · 3 years
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A escopofilia pornográfica de Below Her Mouth (2016)
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Quantidade realmente não significa qualidade. Essa frase foi usada tantas vezes, em tantos contextos, mas me pergunto se alguém já a tenha relacionado a questão de representatividade no cinema. Afinal, se estamos falando de identidades de minorias na tela, não deveria haver limites. Quanto mais, melhor - ainda mais se falando de grupos que tiveram que lutar para serem ao menos um. No entanto, é preciso um certo cuidado e atenção ao pensar nesta questão, principalmente ao tratar-se do cinema queer, em específico o lésbico. Há alguns anos, o cinema contemporâneo, em destaque para o segmento independente e cult, tem preenchido certas lacunas ao levar para as grandes telas as vivências ou ao menos personagens dessa comunidade. O problema é que todos parecem nascer de uma mesma fórmula estereotipada e sexualizada, perpetuando clichês que ferem a luta. Vemos aqui, portanto, o efeito contrário da tal representatividade, muito presente no filme Below Her Mouth. 
Lançado em 2016, a obra causou um certo alvoroço pelos festivais por onde passou pelos motivos mais errados. Dirigido por April Mullen, muitos esperavam que o romance entre Dallas (Erika Linder) e Jasmine (Natalie Krill) seria, finalmente, retratado de forma exemplar e digna de ser visto como referência na cinematografia queer. No entanto, ao invés de se aproveitar do olhar feminino, a diretora se entregou ao poço das fórmulas desgastadas, criando mais um filme que nada tem a dizer sobre os personagens ou sobre o mundo. O filme acompanha Dallas, uma lésbica tomboy que não tem a mínima pretensão de se comprometer com nada além da sua libido e liberdade, e Jasmine, uma editora de moda hétero que vive um relacionamento sem graça e emocionalmente negligente. Carpinteira, Dallas trabalha em uma casa ao lado de Jasmine e desde sempre tinha interesse nela, até que um dia elas se encontram em uma festa para mulheres e começam, num estalar de dedos, um romance. 
Durante os 90 minutos de filme, é exatamente apenas isso que assistimos. Não há desenvolvimento dos personagens, das suas questões pessoais, do mundo ao seu redor. Nada acontece a não ser uma quantidade anormal de sexo. As duas personagens são um reflexo da ausência de qualquer psicologização das figuras femininas, conceito muito presente nas obras do cinema clássico. Suas presenças parecem exercer a mera função de confirmar um estereótipo que, apesar de existir no mundo real, não necessariamente é a representação do todo - os outros tantos filmes que vieram antes já provaram a teoria o suficiente. De um lado, temos Dallas, que foi criada para representar a ideia masculinizada da lésbica, que se apropria das posturas impostas à masculinidade como se ser atraída pelo sexo semelhante fosse algo destinado apenas aos homens. É preciso ser máscula, impositiva, insensível e reprimida emocionalmente - tudo o que se espera de um homem. Do outro, temos Jasmine, essa figura complexada e infeliz no seu casamento, que se desloca pelo mundo da outra personagem de forma vulnerável, perdida e curiosa, como se estivesse em busca de uma aventura para se libertar das repressões pessoais da vida.
Em todas as cenas de introdução do universo de cada uma e a construção da hibridez espacial das duas, os elementos da mise-en-scene são introduzidos apenas com esse propósito de perpetuação. Logo nos primeiros minutos de filme, Dallas é apresentada em uma cena explícita de sexo que é marcada pela frieza e da desconexão da personagem com o ato e com a pessoa com a qual ela divide o momento. Além do fato dela nem olhar para o rosto da jovem durante o ato e assumir uma postura frígida, antes de ir embora, a mulher pergunta “Did you come?”, já explicitando a característica sexual da personagem. É como se o sexo fosse a única arma que a pretendente tinha contra ela, para que pudesse mantê-la interessada em vê-la. Não há nada errado em apontar alguém como um ser humano sexual, o problema, no entanto, é que parece que esta é a sua única camada durante todo o filme. Nas cenas seguintes, vemos a personagem constantemente tratando outras mulheres como encontros descartáveis, como obtenções fáceis que sempre vão estar aos seus pés. 
Já Jasmine, é representada o tempo todo com uma delicadeza quase que ofensiva, como se fosse uma mulher à espera de uma atenção para que a sua existência seja validada. Sua primeira cena, em contraste com a de Dallas, é dela na sala com o noivo em um momento de relaxamento entre os dois. Enquanto ele descansa, ela, sentada em cima dele, pinta as unhas dele e, ao acordá-lo, inicia uma possível noite de sexo entre os dois. No entanto, o noivo percebe a pintura das unhas e se sente desconfortável, tendo usado inclusive a palavra “violado”, como se fosse uma grande afronta a sua ideia socialmente construída de masculinidade. Não é preciso dizer que a noite termina com um tom de desconforto e Jasmine se sentindo solitária. O importante aqui é perceber a construção da personagem: a pintura das unhas representa um atitude fetichista; a iniciação do coito após esse ato a sexualização; e a rejeição a ausência de conexão emocional entre ambos. Todos esses elementos reunidos representam a grande mulher hétero que irá ameaçar a estabilidade do mundo da homossexual. 
O relacionamento das duas é composto totalmente por esses elementos e não consegue se desenvolver para algo mais além, limitando a complexidade das dinâmicas para além da grande tela já que a única coisa que mantêm uma conectada à outra é a novidade sexual entre elas. Ouso dizer que 90% das cenas entre as duas são delas transando, direcionando um filme para uma ótica romantizada da pornografia. Surpreendentemente, já que trata-se de uma diretora mulher, as cenas de sexo entre as duas mulheres colocam seus corpos em posições extremamente prevalecidas pela cinematografia. Se por um lado tem-se a tentativa - falha - de naturalizar o corpo feminino ao exibir cenas das personagens trocando de roupa e deitadas nuas, por exemplo, do outro não há como fugir da constante escopofilia filmada. Gravadas em sons diretos, amplificando os sons de gemidos e do contato corporal, as cenas se utilizam de planos abertos e close-ups dos corpos, reutilizando a fórmula presente, novamente, em filmes clássicos na época de enaltecimento do feminino por meio da presença de grandes atrizes hollywoodianas. 
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Estes momentos, que deveriam representar ao menos uma certa intimidade privada - já que o relacionamento das duas é uma traição ao noivo de Jasmine - entre as duas, torna-se um espetáculo voyeurístico e erótico. As escolhas cinematográficas não mostram nada além de seus corpos nus: os close-ups quebram com a ideia da Renascença em favor da fetichização extrema dessa relação, de modo que a narrativa, aqui simplista e oca, é deixada em segundo plano para que o prazer visual assuma o controle e enalteça os desejos e as fantasias de quem assiste. As filmagens sexuais são uma verdadeira performance, um espetáculo pornográfico, e os destaques de seus órgãos genitais e o movimento dos mesmos em conjunto são a tônica do filme, reforçando uma ideia de que os encontros homoafetivos são apegados somente ao físico. Vale ressaltar que o problema em si não são os close-ups, mas sim a mise-en-place dos mesmos, que remetem, de forma inferior e oposta, ao uso feito por Àgnes Varda, por exemplo, em “As Duas Faces da Felicidade”. Ao filmar a cena de sexo entre os dois amantes, Varda se utiliza de planos de destaque de suas mãos, corpos entrelaçados, peitos, mãos, trazendo uma poesia e valorização daquela troca.  
Preso nessa estagnação de concepção criativa e construtiva, o filme não consegue conceber qualquer ritmo e equilíbrio para que ao menos isso pudesse prender o espectador. Desde o primeiro minuto, já é apresentado todos os elementos e informações das personagens, afinal, já não eram muitas para início de conversa, e todo o desenrolar da história torna-se previsível e sem graça. Até mesmo a fotografia, que de início é um acalento aos olhos do espectador, se adaptando de acordo com os espaços exibidos e as energias ali presentes, se transforma em mais um cansaço narrativo. Já quase no fim do filme, o roteiro tenta fazer uma virada de curva, um aprofundamento na relação de ambas, ao explorar pedaços do passado de cada um. Descobre-se que Dallas, embora tenha tido pais que a apoiaram quando decidiu assumir sua sexualidade, sofreu quando criança por não ser entendida pelo mundo, e que Jasmine teve uma experiência homoafetiva quando jovem que a traumatizou, pois a mãe descobriu em flagrante. São bons elementos para se trabalhar se já não fosse tarde demais e se não tivessem passado despercebido. 
Nesse momento, seria uma chance de abordar questões de extrema relevância na discussão queer, como heterossexualidade compulsória, homofobia internalizada, pautas de gênero, entre outros, trazendo o debate para a contemporaneidade e oferecendo uma importância ao movimento que cada vez mais tem se esforçado em compreender as suas diversas ramificações. Além de não mergulhar nessa abertura, que teria dado uma singela significação para obra como um todo, a diretora opta por uma abordagem romantizada e um tanto quanto infantil das duas. No momento em que ocorrem essas confissões, que são colocadas como algo importante para ambas, principalmente para a personagem da Dallas que é reprimida e não compartilha a sua história com ninguém, o filme passa de uma pornografia para uma fábula ao mostrar as personagens em passeios em carrossel de parques, pela praia, trocando fotografias, com uma postura de pré-adolescentes acompanhadas de um voice-over de falas como “eu compraria iogurte para você”. Essa linguagem carrega em si uma dualidade que define o filme: o tom infantil, junto à sexualização, remete à ideia romantizada de um relacionamento que se sustenta somente no sexo, já que moralmente e sentimentalmente nada tem a oferecer; é quase como a construção de um sonho perfeito de foreplay. 
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cinemadecupado · 3 years
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A claustrofobia de Beanpole (2019)
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Não há dúvida de que o cinema assistido por puro entretenimento, para, como aponta Ismail Xavier, se “transformar no lugar por excelência de manifestação dos desejos, sonhos e mitos do homem, graças à convergência entre as características da imagem cinematográfica e determinadas estruturas mentais da base” (XAVIER, p.23), é válido e necessário. Mas não há nada igual à experiência de se deparar com um filme que te descola, incômoda, entra no cerne da suspensão da ilusão e te despeja da forma mais linda e inquietante possível na crueldade do mundo. Sai-se da sala do cinema, encontra-se o mundo real e aquela representação imagética parece ter se apropriado da mente do espectador. Esse é o efeito inquietante do longa-metragem russo Beanpole (2019), que aborda os efeitos pós Segunda Guerra Mundial na vida dos cidadãos de Leningrado a partir da rotina de uma mulher que sofre de episódios de PTSD de tamanha intensidade que seu corpo fica completamente paralisado. A experiência desconfortável que senti me remeteu ao momento que Serge Darney nunca mais foi o mesmo ao se questionar sobre o cinema e sua relação com ele. 
Durante anos, o autor carregou dentro de si a angústia que sentiu ao se deparar com a problemática em torno do travelling de Kapô, um visual até hoje criticado entre aqueles que se entregam à sétima arte a tal ponto que a ideia de se render a ela “para que ela ensine a perceber incansavelmente pelo olhar a que distância de mim começa o outro” parece ser o único caminho a seguir. (DARNEY, p.6) É exatamente assim que me sinto. Só que por motivos opostos. Mesmo debruçado sob perigosa atuação do “lembrar para que não se repita, sem permitir que essa lembrança se torne mais um produto” (BEZERRA, p.15), o filme em nenhum momento, como aponta Rivette, tenta se apropriar absolutamente da realidade para reconstruir um marco cruel e histórico apenas para suprir a cultura voyeur introduzido pela decupagem clássica. 
Nesse contexto moral, tem uma sequência do filme que, nas palavras calorosas de Serge Daney, parece ter sido uma daquelas coisas que me observaram mais do que eu as vi. Sob uma direção que prestigia os sentidos visuais da fotografia e de uma cenografia que diz tanto quanto os diálogos, a câmera se movimenta consciente de seu papel e em nenhum momento abusa do seu limite ético ao filmar mãe e filho em um momento afetivo de brincadeiras que termina com o falecimento da criança devido a mais uma crise psicótica. Atento ao fato de que “fazer um filme é mostrar certas coisas, é também mostrá-las de uma determinada maneira” (BEZERRA, p.15), Balagov não tem intenção alguma de explorar essa dor, direcionando o filme a uma pornografia servente do absoluto realismo. A cena se desenvolve com base em dispositivos que valorizam a sua essência com relação ao seu tempo e espaço exprimida no quadro.
Sem quaisquer indícios do que está por vir, as imagens são apresentadas em planos médios e próximos aos corpos dos personagens, focalizando em suas expressões, responsáveis por transmitir suas verdadeiras emoções do momento somente pela relação dos corpos, sem direção alguma de palavras ou até mesmo trilhas - o único som é o dos barulhos emitidos pelos personagens. O que se vê aqui é apenas uma manipulação da movimentação de câmera e a transparência dos cortes -  duas escolhas técnicas de um uso híbrido da decupagem clássica e da montagem proibida que nada interferem no processo de espremedura dessa realidade. Afinal, como afirma Bazin, “para que haja plenitude estética do filme, precisamos acreditar na realidade dos acontecimentos sabendo que houve trucagem” (BAZIN, p.94). No início da cena, observa-se os dois em um plano aberto como um ponto clássico de localização do espectador, já que agora os dois estão em sua casa (antes é exibido uma sequência do garoto no hospital que a mãe trabalha), e logo depois é utilizado um raccord de continuidade para um plano fechado, evidenciando a intimidade e dos dois. 
A cena se desenvolve para um plano fechado somente na mãe, enquanto o menino atrás dela está fora de foco, para mostrar como a maternidade é intrínseca até mesmo nos momentos pessoais, mostrando uma falta de privacidade e ao mesmo tempo de qualquer incômodo da parte da personagem. Essas interrupções do filho são o que a completam e a fazem sentir viva, tanto que, as cenas seguintes são apresentadas de forma a evidenciar tudo isso. Nessa lógica, a câmera assume um movimento, sem nenhum corte, para mostrar a brincadeira de vai e vem entre mãe e filho, seguindo de um raccord de movimento que será todo conduzido para outro plano que remete à da câmera na mão. Acompanha-se o menino correndo com a mãe atrás para que ocorra uma experiência sensorial de toda a energia depositada ali, de ambas as partes, dessa liberdade, mesmo em um espaço pequeno como o deles, que se sentem quando está confortável ao lado de quem se ama. É um momento puro e espontâneo de uma felicidade que só os dois entendem. 
Mesmo com os cortes, o espectador se depara com uma sequência de pouco mais de três minutos que não é fragmentada, pois há uma interjeição ao “realismo absoluto” que respeita que “a ruptura transformaria a realidade em sua mera representação imaginária” (BAZIN, p.99). A montagem aqui é precisa e pontual ao capturar integralmente o deslocamento entre mãe e filho, pois os planos entre os cortes ainda permitem que o tempo escorra e evidencia que “o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação”. (BAZIN, p.98) Visto que o cerne da cena é exatamente a presença dos dois no mundo macro e micro, ela não poderia funcionar se fragmentasse os seus corpos e como estes se relacionam, e, portanto, sempre que se utiliza de cortes pontuais, ela faz com “que a narrativa reencontre a realidade, que um único de seus planos convenientemente escolhidos reúna os elementos dispersados anteriormente pela montagem”. (BAZIN, p.98)
Essa decisão, é claro, não foi meramente estética. Como apontado acima, o tempo é precioso na absorção de todos os elementos da natureza dessa rotina. Após um minuto em um mesmo local, acompanhando o deslocamento de uma mesma situação sem suprimir totalmente o tempo, é como se o espectador já tenha se adaptado à essa substituição do real, permitindo que a “fábula nasça da experiência que a imaginação transcende” (BAZIN, p.96). Ele foi conduzido para esse ambiente pela potência sensorial e não pelas respostas explicitadas, o que, por excelência, já quebra com o padrão da decupagem clássica. 
Com essa estética híbrida, que construiu toda a sua carga emocional na observação íntima dos dois personagens, a interrupção surpresa das sensações de conforto das cenas dos dois brincando pelo episódio de PTSD desloca o espectador para um lugar de completa claustrofobia. Sem aviso prévio, a câmera parada apreende o corpo da mãe paralisa com o filho embaixo para logo em seguida se utilizar de um plano fechado para focar nos detalhes do rosto e da mão da criança, única imagem que temos dela a partir de agora. O som da cena segue natural, de modo que destaca a respiração grunhida, o choro desesperado, o sufocamento. 
Aos poucos, a mão, um dos principais condutores visuais da cena, vai parando de se mexer, sem que a mãe tenha qualquer consciência do que está acontecendo. Como parte da história para além da passividade do voyeurismo, o espectador, instigado pela experiência sensorial, sente as dores como se ele mesmo estivesse ali, como se fosse uma das mães da guerra, sente um impulso de transpassar a grande tela e tomar a situação com as próprias mãos devido a um julgamento próprio e não condicionado. 
É como a guerra: uma ruptura sem aviso para quaisquer possibilidade de preparação para ela. Nesse momento, ele se vê, contra o seu desejo, em confronto com uma representação da realidade que não deixa as ambiguidades da vida (Como pode ter acontecido isso se estava tudo bem?) escaparem, se apropriando delas de forma vazada e incômoda em seu tempo-espaço, pois “certas situações só existem em termos cinematográficos quando sua unidade espacial é evidenciada”. É um aviso de que não se trata de uma mera representação da vida, não é uma ilusão;  apesar de “não prescindir da realidade documental” (BAZIN, p.94), é uma apreensão realista - não absoluta - e crítica do todo e é preciso um olhar atento e ativo para compreendê-la. Essa cena, sob todos os aspectos que a compõem, é uma verdadeira representação da moral da memória e da pornografia da imagem. 
Tratando-se de uma história que reflete os tempos cruéis na Rússia, o diretor se preocupou a todo momento em não transformá-la um espetáculo, sem explorar a dor que, para muitos, foi extremamente real. Nesse tempo imagético “estendido”, sente-se muito mais a dor quando imagina-se o estado do corpo do menino sem vida do que se tivesse sido mostrado completamente a chegada da morte. Ao não ver, o fato permanece chocante aos olhos, pois não ocorre a possibilidade de uma naturalização de que foi mais uma morte entre tantas, o que acaba dando espaço para uma imaginação que acaba sendo mais brutal do que a própria exibição. O objetivo não é contar a história como ela foi; isso os jornais, por exemplo, podem fazer. O plano aqui é te fazer olhar para ela sob um outro olhar, que não o já explicado, para que, a sua mente já acostumada, consiga julgá-la mais profundamente. Assim, a sequência analisada, abandona o lugar concreto da morte acidental de uma criança e remanesce na sua experiência sensorial enquanto símbolo abstrato de outras problemáticas sociais. 
A morte aqui vai reverberar em uma ideia de perda da sociabilidade, da saúde mental, do abandono social, da destruição externa e interna, da esperança, de tempos áureos e perdidos. É uma metáfora viva e visual dos estragos da guerra, da interrupção repentina da vida de tantas mulheres. Tudo começa na crença da melhora, no abraço às pequenas coisas do mundo para tentar se reconstruir cada dia mais, para terminar na na morte - o símbolo mais doloroso da vivacidade de uma guerra que segue naqueles que sobrevivem enquanto tentam voltar a estar vivos. E é graças a uma mão estendida no ar, na resposta além do que se vê, que essa sequência se infiltra no filme e no espectador com a potência de uma bomba. E é por ela, por este cinema, que até hoje não consegui reassistir a obra - e muito menos esquecer. 
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cinemadecupado · 3 years
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O neorrealismo na vida de Camille Claudel (2013)
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Camille Claudel? A estudante do Auguste Rodin? Amante? Ela depois virou esposa dele, né? É incontável as vezes que o nome da artista gráfica e escultora francesa esteve relacionado somente ao tempo que viveu ao lado de Rodin, um dos maiores nomes da escultura moderna francesa. É como se o tempo tivesse apagado completamente a sua vivência independente e particular, que foi tão grandiosa quanto a que ela dividiu com o artista francês, em favor de uma misoginia estrutural. Por anos, Claudel criou, isolada em um estúdio em Paris, obras que hoje são consideradas revolucionárias entre os críticos e entusiastas das artes plásticas e na época eram praticamente ignoradas, o que a levou ao declínio emocional e artístico. 
Esse é o ponto de partida de Camille Claudel (2013), longa-metragem de Bruno Dumont que, baseado em cartas trocadas entre a artista e o irmão Paul Claudel, se prevalece dos 30 anos nos quais ela viveu internada em uma instituição mental como consequência desse isolamento em um roteiro que é uma uma grande homenagem e reparação histórica ao legado deixado por ela. Depois do relacionamento com Rodin, a artista, uma das poucas mulheres do ciclo artístico da época, tentou continuar com as suas criações, mas acabou entrando em um estado de paranóia de que suas obras e ela estavam sendo perseguidas por Rodin. Essa resposta pode parecer sem fundamento aos olhos superficiais de quem julga, mas, no fundo, ela não estava em completa insensatez. 
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Internada em 1913, a artista, que já vive há dois anos sob essa condição, é retratada na obra de Dumont durante três dias da sua rotina sob uma decupagem totalmente inspirada nos conceitos neorrealistas, descortinando os seus sentimentos e motivações, assim como as ambiguidades da vida e como elas transpassam pela personagem. Apesar de não focar em uma personagem diretamente sociopolítica popular, a obra, assim como os filmes italianos da época, se responsabiliza, sob os ideais de Cesare Zavattini, por ficcionalizar o real, amplificando o imediatismo e o tempo de espera dessas realidades que poderiam ser encontradas a cada esquina. O objetivo aqui, elucidado pelo realismo de Gyorgy Lukács, não é deformar a realidade com uma ideia decadente de manicômio, mas sim articular todas as camadas dessa experiência vivida por uma pessoa que realmente existiu. 
Em uma condução lenta, onde nada de extraordinário efetivamente acontece, é como se o espectador realmente estivesse passando três dias ao lado da artista, observando-a em sua rotina de acordar, lhe darem banho, preparar sua comida, procurar por um espaço onde possa ficar sozinha e esperar pela visita do seu irmão - algo que ela passa o filme inteiro aguardando. Sob essa repetição dos dias e do realismo natural do espaço (foi-se utilizado a equipe e pacientes, todos não atores, do asilo escolhido para filmagens) o filme enfatiza exatamente o que teria acontecido se a câmera não estivesse ali ou se não houvesse uma recriação, de modo a valorizar muito mais a espontaneidade da vida do que a manipulação narrativa que o cinema clássico propõe. 
Não é preciso criar nada quando a realidade dessa artista, com todos os seus deslocamentos, silêncio e gestos, já diz muito. A monotonia aqui é casualmente turbulenta e Dumont soube equilibrar e investigar os constituintes que permeiam essa vida de forma coesa e minuciosa durante o filme a partir dos elementos estéticos e narrativos: a solidão de não receber constantes visitas e de não poder mandar cartas para antigas amigas; o incômodo dos gritos dos pacientes, do tratamento dos médicos e da perda da liberdade; a nostalgia dos tempos que criava; a esperança de um dia sair e retomar a sua vida em um canto só seu; e a “loucura” de perder tudo o que era seu para as mãos de um homem que invalidou todo o seu trabalho. Tudo isso estava explícito na mise-en-scene de cada longo plano. 
Na primeira cena do filme, o espectador já se depara com Camille nua e sendo lavada pelas enfermeiras na frente de todo mundo. Sem oferecer nenhuma palavra, a situação rotineira já apresenta a ausência de qualquer autonomia e privacidade. Em paralelo, logo depois vê-se a artista cozinhando a sua própria comida, único momento que pode fazer algo por si pois alega que corre o risco de ser envenenada. Ela se agarra tanto a esses pequenos atos que quando um dos médicos tenta impedir que ela o faça ela sai em defesa como se sua vida dependesse disso. No decorrer do filme, não é difícil achar cenas nas quais Camille tenta se desvencilhar dos outros pacientes, que vivem gritando à sua volta. Sua rotina é uma verdadeira dicotomia, cujo principal desafio é tentar manter vivos quaisquer resquícios de ser humano enquanto, diariamente, tudo a leva a um apagamento total de sua presença em um lugar onde ela claramente não pertence. 
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Sem nenhuma manipulação artificial, como músicas que conduzem a emoção do espectador, a força do filme está na organicidade sonora e ambiental, potencializada por uma interpretação completamente silenciosa e excruciante de Juliette Binoche. A atriz francesa comanda as cenas, praticamente todas sem diálogos, com um desnude total da sua interpretação, que com certeza iria agradar as exigências de Zavattini. Na pele de Camille, Binoche dispõe na tela todas as angústias, revoltas e anseios da personagem, que estabelecem seu lugar no mundo e reverberam certos aspectos sociais da época, através da linguagem corporal e dos gestos. É quase como se a atriz tivesse reencarnado na artista de tão crua que se posicionou diante da câmera. Entregue à realidade dos fatos, Juliette consegue se movimentar pelas ondas de sentimentos da personagem de forma natural que até o espectador esquece que há de fato uma interpretação em jogo. 
Ainda na primeira parte do filme, há uma cena na qual Claudel está andando pelo corredor desmotivada e sem aparente vontade de viver e recebe a notícia de que seu irmão irá visitá-la. Em questões de segundos, Binoche transita entre a depressão para a felicidade esperançosa em uma crise de riso e choro. É impressionante como toda a movimentação da atriz nas cenas é tão latente e acessível que é impossível não se envolver. Se nesse momento o que vemos é uma pequena alegria no meio do pesar, em outro há a personificação da melancolia. Enquanto observa uma representação de um romance por um casal de pacientes, Juliette somente com a força do olhar marejados e com um certo brilho transparece tudo o que ela sente ao ver aquela cena de amor: lembranças do relacionamento com Rodin, de tempos áureos, de algo que ela já foi capaz de viver e hoje lhe foi tirado. 
A direção de Dumont é plena em respeito à essência da realidade da artista. Até mesmo a ausência dos diálogos é uma forma de ressaltar a claustrofobia e solitude da personagem. Afinal, para que falar quando não será ouvida? É um gasto de energia que ela não pode se dar ao luxo. Em contraste com todo o silêncio das outras cenas, ouvi-la falar, portanto, é um momento quase libertário. A intensidade que Juliette Binoche oferece ao único monólogo verborrágico da personagem para o irmão é tamanha que, para além das palavras, a única intenção é a da exposição de tudo o que está entalado dentro de si; era a chance de ser ouvida e compreendida; era, talvez, sua única chance de talvez voltar a viver. 
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O único momento que esse imediatismo de Zavattini não é o protagonista do drama é quando o filme se desloca para o ponto de vista de Paul Claudel, já nos momentos finais. Em uma linha narrativa que remete aos discursos de Guido Aristarco, o personagem de Paul é totalmente construído sob um estereótipo em movimento que se contrapõe diretamente com quem Camille Claudel é. Interpretado por Jean-Luc Vincent, o irmão da artista é um ferrenho religioso que não percebe a vida para além dos dogmas, julgando a todos que não se encaixam nesse padrão social que lhe consome. Em apenas um personagem, foi depositado todos as características que definem o machismo, a intolerância e incompreensão - uma reflexão direta dos padrões sociais da época - que Claudel sofre constantemente. Seus movimentos parecem propositalmente calculados para não terem a mesma espontaneidade da primeira parte do filme. 
Sua primeira cena é em uma beira da estrada, onde sai do carro para rezar em um plano que o coloca em um contato direto com o espectador, como se quisesse convencê-lo do que diz. Cada cena foi pensada para representar uma faceta do todo. Se na primeira já fica claro o fanatismo, na próxima dele em um quarto hotel completamente vazio, explicita-se o julgamento do mundo por uma perspectiva intolerante e invejosa: ele escreve uma carta para uma conhecida que, segundo ele, também cometeu o mesmo crime da sua irmã - que agora está pagando o preço. Fica claro que ele ressente o talento dela e julga o papel que a arte teve na vida dela, culpabilizando o fazer artístico pelo estado de loucura de Camille. 
Embora essa mudança cause um certo estranhamento no espectador, em relação com o todo, foi uma inserção narrativa que, na verdade, potencializa ainda mais o espectro emocional. Durante toda a primeira parte do filme, a presença de Paul é quase onipresente na expectativa que a artista coloca na visita dele; é o que a incentiva a levantar da cama nos dias que seguem. Quando Dumont apresenta, sem aviso, que esse personagem é, na verdade, o oposto idealizado por ela, uma tristeza se apropria do restante do filme. Não há mais esperança. A libertação dela é uma ilusão, já que esse homem nada mais é do que a representação da mesma sociedade que a transformou em uma presença absorta. 
Potencializada pela estética e montagem do filme, essa narrativa produz propositalmente uma experiência maçante e desgastante  - assim como foi para ela. Ao final do filme, o espectador se encontra tão letárgico quanto Camille Claudel. Mesmo entre algumas sequências sacais, o diretor consegue, durante os 87 minutos, ir ao cerne da questão a todo momento. Na metade do caminho, o espectador já se questiona como alguém foi capaz de viver desse jeito por 30 anos. É desesperador quando, assim como Claudel, quem assiste percebe que nada vai mudar, a não ser a claustrofobia diária que se materializará cada vez mais. Como defende Zavattini, o filme não oferece soluções e muito menos respostas definitivas, pois a realidade não tem fim - a não ser no momento de sua morte. As respostas estão exatamente nesses pequenos fazeres e sentimentos do dia a dia, que refletem o passado, o presente e até mesmo o futuro dessa artista. 
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cinemadecupado · 3 years
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A fragmentação da decupagem clássica: como o cinema moderno renovou a linguagem
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Essas vanguardas são algumas que fazem uma releitura elástica das técnicas de montagem, vistas pelos autores como espírito de complacência e de ruptura, para atravessar a janela centrífuga do cinema. Ao apontar que a montagem clássica é indispensável na ilusão perfeita da neutralização da descontinuidade visual, Ismail fortalece a defesa de por Stan de que somente a radicalização vai debilitar com a concepção da câmera enquanto mero aparato de registro assimétrico do real. É preciso, portanto, um “mágico supremo com chapéus cheios de todos os tipos de coelhos conhecidos” para julgar a câmera-olho, a decupagem clássica e a montagem eisesteiniana como experimentos contínuos e conflituosos para alavancar a experiência cinematográfica para o cineasta e o espectador.
Vítima de um enquadramento antiquado, o cinema foi direcionado à uma obrigação geral: a de, como aponta Ismail Xavier, se “transformar no lugar por excelência de manifestação dos desejos, sonhos e mitos do homem, graças à convergência entre as características da imagem cinematográfica e determinadas estruturas mentais da base”. O cinema, majoritariamente o  americano, foi inscrito “dentro dos limites de convenções particulares, naquele momento já presentes e vigentes em outras formas de discurso dramático e/ou narrativo”, cumprindo, assim, por meio da decupagem clássica e seu absoluto realismo, com socioeconômicos e não artísticos. Contrário a essa concepção explorada  por Ismail, o autor Stan Brakhage aponta que “a estreitíssima realidade visual-em-movimento, contemporânea, esgotou-se”, resultando em uma cegueira causada pelo voyeurismo e em uma passividade do espectador que não tinha autonomia observativa e muito menos crítica.
Longe da romantização da vida, movimentos como Nouvelle Vague e a New American Wave, desafiaram a decupagem clássica, enxergando o projetor como uma fonte inesgotável de criatividade e fazendo da pluralidade da montagem sua principal ferramenta. De acordo com Stan Brakhage, era preciso essa perda total da inocência do olhar - do espectador e, principalmente, do cineasta - para que ocorresse uma abertura no espaço para o conhecimento curioso, de modo a seguir em “busca de conhecimento fora da língua, baseada na comunicação visual, solicitando a evolução do pensamento ótico e confiando na percepção no sentido mais profundo e original da palavra”. Sem descartar totalmente os elementos da decupagem clássica, como a narrativa linear, os filmes franceses Jules and Jim (François Truffaut) e Une Femme est Une Femme (Jean-Luc Goddard), além de ampliarem a sociopolítica do neorrealismo italiano ao optarem por temas comportamentais transgressores à falsa moralidade social, deram continuidade a um cinema livre do seu pedestal de intocável.
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No longa de Truffaut, as cenas em planos abertos e médios, de média duração, se apropriam de técnicas da fotografia e literatura para transcender a sua história. Do início ao fim, o espectador é conduzido por um voice-over, como um narrador observador da literatura ficcional. O uso desse dispositivo oferece a ideia de que a história não se desenvolve em um tempo “real” e de que este é o momento de subversão para que o espectador substitua a suspensão pela reflexão. O filme também vislumbra, como incentiva Stan, um manuseamento mais complexo e curioso dos materiais à disposição em favor da obra, ao usar, por exemplo, reportagens jornalísticas (imagens da guerra), esculturas e fotografias como elementos narrativos. Há uma sequência na qual a o sentimento da personagem não é exprimido somente pelo diálogo; é utilizado frames fotográficos da personagem sorrindo para oferecer a ideia de impressão no tempo e da preservação de um sentimento que não volta mais. Ao se juntar à potência de movimento do cinema, que fica mesclada na cena, a fotografia, enquanto documento de algo pré-existente personifica a felicidade, tornando-a palpável e um marco, já que, naquele momento, foi o mais perto que ela chegou da mais completa sensação. 
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Já o filme do Goddard, se apropria de alguns elementos vistos na arte teatral, refutando as diferenciações apontadas por Ismail Xavier, principalmente com relação à potência ilusória de suas “janelas”. Sob o artifício das cartelas que se dispõem na tela (vide as descrições das cenas de um ato) e a quebra da quarta parede, quando, por exemplo, a personagem diz ao espectador “vamos começar a nossa farsa”, Goddard dá o aviso de que não se trabalha com o real, mas sim com uma passagem por ele. É um método interessante, pois, como a personagem sonha em ser uma grande estrela do show-business, é uma forma de enfatizar como a mente dela enxerga a vida como um musical, uma eterna representação de um sonho distante. Sendo o foco aqui ser arte e induzir a visão individual e crítica, o diretor ainda abusa de mecanismos como jump-cut, time-lapse e cortes que remetem a noção de conflitos do Sergei E. Esta última na sequência que o ciúme é explicitado pela contraposição contínua  dos planos das feições da mulher e de uma foto como um jogo de provocação e de negação da verdade do que ela está vendo, que a mulher acaba por perder.
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 A nova onda americana ousava mais ao se firmar “a partir de suas perspectivas mais diretamente reconhecidas enquanto visões não humanas, embora dentro do humanamente imaginável”, traçando uma viagem psicológica expositiva do filme às possibilidades da imaginação caótica e fragmentada capturada pela evolução da câmera-olho de Stan. Em Meshes of the Afternoon, Maya Deren, por exemplo, a sequência da mulher na escada com o corpo contorcido é feita com câmera na mão e raccord de movimento, oferecendo à imagem a exploração da perturbação da mente pela elasticidade corporal evidenciada. O simbolismo é constante e em cenas como as da chave na mesa, preenchida por sons plásticos, o objeto, ao ser colocado na montagem em conflito com planos fechados da atriz, é retirado do seu lugar material e visto poeticamente como a entrada em um caminho da libertação pessoal e autoconhecimento. Outro nome importante desse movimento é Shirley Clarke, que se desprende totalmente da narrativa e se aproxima de um elemento impressionista. Em Bridges-go-Round, sob um hibridismo entre cinema e música, ela explora a elasticidade de filmagens idênticas em duas versões (jazz e eletro) e percebe que as experiências eram distintas: romântica, como se fosse um passeio pela cidade de Nova Iorque, e claustrofóbica, em uma impressão aflita da grandiosidade da forma e emocional das pontes. 
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