Tumgik
ceriema · 5 years
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revoada
O mormaço do asfalto úmido queimava em minha nuca, já era fim de tarde. Longo e monótono, captura o olhar apaixonado com um pôr-do-sol utópico que dura horas e invade a noite recusando-se a desaparecer por trás das nuvens negras que relutam a dançar lentamente, levadas pelo vento parado e sem vida. No ponto, um tipo esguio de olhos esbugalhados e nariz fino coça seu cabelo cheio e mal aparado enquanto fuma um cigarro contorcendo-se em cócoras. Tenta desviar das gotas de chuva preguiçosas que ainda insistem em permanecem sobre o banco sujo, ignorando o calor à sua volta. Parece encontrar conforto na posição que lhe exige o maior esforço possível. Assim fica até que seu cigarro termine depois de longas e proveitosas tragadas. O ar quente favorece uma revoada desesperada de aleluias que mal conseguem se sustentar com suas asas falsas. Faz subirem até onde o céu branco se faz perder de vista. Do outro lado da rua observo-a, minha obsessão. Repentino, outro me atrai a atenção. Levo a mão à bolsa e acaricio as moedas. Não é esse.
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ceriema · 5 years
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três contos (3)
[1] O pároco interrompe a confissão e alarma a todos os moleques enfileirados sob as altas paredes do altar, cada um em frente ao seu padre, que nossa penitência está a caminho. A remissão será alcançada por vós, diz, quando os pés do Senhor Morto tocarem o chão. E mal termina sua anunciação, pois acaba por emitir um assovio rouco e estridente por alguns minutos, tempo suficiente para que os padres se levantem e formem um círculo de 4 pontos ao seu redor, murmurando qualquer coisa cada vez mais alto, parecendo competir com o estampido das Pedras que atingem os vitrais da catedral por fora.
[2] Cuspindo filhotes hemípteros brancos transparentes conforme a tese de Bill Clinton ou a antítese de Arnold em meio à saliva seca ininterrupta o pulo o susto a insônia a volta a esse mundo triste fétido e solitário escariado pela rotina o Trim excessivo no cabelo o aroma de alvejante delicadamente despejado sob as axilas a ponta-pose de dentro da minha Mercedes [ eu passo primeiro, eu mereço ] o sapato macio da marca que eu mais gosto e a satisfação de ver-me concretizar em um poema da manhã, eu fiz por perecer.
[3]  Àquela altura, me via penetrar festas adversas para sustentar a minha fome. Numa delas ouvi o próprio Dionísio contar que, ao retirar o toque de ouro de Midas, erroneamente o trocou pelo toque de fezes e percebeu seu equívoco apenas 15 minutos depois, ao encontrar o fétido rei e metade de sua corte cobertos em merda.
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ceriema · 5 years
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o fator desilusão
Entre o colapso de corpos do Terminal Central, entre as gargalhadas das diaristas, um pouco à direita dos adolescentes espinhentos e mais à esquerda dos esnobes trabalhadores de escritório, aquela menina soberba e impassível cuidadosamente retira o excesso de rímel dos seus cílios, um a um, descartando-o ao ar ou sobre a alma mais próxima. Imaculada dos pés à cabeça, sem um elemento que poderia dizer-se por si só, acaba-se em um todo fechado, mas também à beira da explosão até que se prove o contrário.
Finge ler uma dessas bobagens adolescentes, mesmo com seus vinte e poucos. “Até onde o fator beleza importa”, indaga ou afirma o capítulo do livro floreado, de letras descontraídas e garrafais, que fazem bem o papel de ocupar o pólen barato e fedido. Mas é que, de fato, só começou a ler quando o guarda passou a, religiosamente, gastar 15 minutos diários do seu trabalho em conversas silenciosas - diria também impassíveis - com ela. Em um desses dias, vi o ritual se estender para dentro do ônibus. Seus olhos seguiam-no pelas janelas, lutava sem sucesso a fim de desviar atenção para o livro e, nas duas últimas olhadas, deve ter esboçado um sorriso de canto, chanfrado e meio torto, é verdade, mas ainda assim.
Particularmente, achei engraçado aquela figura se render e quebrar a apatia do seu rosto, mas acharia mais interessante acompanhar os próximos dias enquanto, pouco a pouco, ela vai demonstrando e contendo, como em um jogo sujo, e por dentro imaginará mil coisas, abolirá outras mil, e, de repente, por conta de uma interpretação errada ou qualquer coisa, cairá ao chão e deixará de colocar a camiseta por dentro da calça e nem ao menos limpará seus tênis diariamente. Se perderá na mesma poeira que a trouxe ali e ninguém mais a veria - alguns até diriam que é ela, mas ainda assim.
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ceriema · 5 years
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teto superior
Acordou alguns minutos antes de o despertador tocar e, quando se contraiu dolorosamente para olhar por debaixo das cobertas, sentiu-se surpreso por não ter se transformado em um inseto [apesar de que este tipo de bênção não vem no momento em que esperamos]. Havia se esforçado muito na noite passada, suas juntas latejavam e seus músculos pareciam distender-se à menor insinuação de qualquer movimento.
Na verdade, o inseto estava no outro canto do quarto, sentado ao chão, encostado preguiçosamente sobre a parede, e o sangue já começava a secar - Enfim!
Mas o celular já despertava e nem amanhecera, precisava arrumar-se e, o pior, despender um bom tempo lavando do rosto todas as gotículas de sangue, que ameaçavam se impregnar em sua pele. Não bastasse o chuveiro queimado, descobrira um corte razoavelmente profundo na palma da mão. Neste momento, desistiu do café: O ônibus urgia.
Durante o trabalho mal podia conter-se na cadeira enquanto calculava o fim que daria aquele corpo, se o partiria em pedaços, como desceria os 8 lances de escadas de degraus altos, que deveria ter consertado a mala alguns anos antes, quando as alças se desprenderam, parecia tão fácil na progressão da música ”cut yourself into little pieces”, repetia a si mesmo.
Ao chegar em casa, um tanto mais tarde do que esperava, olhou para o corpo e sentiu, como um lapso, alguma misericórdia. Interrompeu-a ao perceber que o chão estava limpo e, apenas quando desviou o olhar, viu que o sangue havia evaporado e condensado-se no teto. Mas não permanecia lá como um coágulo inerte, pelo contrário, impregnara na pintura como um bolor vermelho-escuro denso, que parecia multiplicar-se lentamente.
E deitou-se na cama desarrumada, apenas para “colocar o corpo no lugar”, pensou, e veio a acordar somente ao fim da madrugada. Acordou por conta de um sonho que mal lembrava, mas fez seu peito formigar. À medida que o susto passava, olhou novamente para a mancha no teto e indagou a si mesmo se era possível que ela houvesse penetrado o concreto e dado às vistas do apartamento de cima.
O medo gerado pela dúvida foi subitamente apagado pela rotina. Afinal, teria que deixar a árdua tarefa de se preocupar para mais tarde.
À noite, estava mais frio. Ao que parecia, a mancha havia parado de se multiplicar. O corpo permanecia escorado na parede, como se estivesse exausto. Não havia inchado e muito menos exalava qualquer odor senão o de graxa. Também não havia qualquer sinal de rigor mortis. Começou a se questionar se não seria mais fácil conviver até o fim de semana com aquele peso, assim teria mais tempo para resolver tudo com calma.
E assim fez. Entretanto, depois de 5 dias do acontecido, deixara de enxergar naquele corpo o inseto que havia matado a canivetadas em uma noite quente, por causa de um olhar qualquer que talvez nem mesmo tenha significado o que significou. Mas o havia exposto, exposto aquilo que há tanto tempo guardava para si e quase ninguém havia visto.
Agora o corpo já se sentava na única poltrona do apartamento e ganhara curativos e roupas limpas, que apesar de um tanto apertadas, serviam bem para quem não precisasse se movimentar. Bons modos não são o seu forte, mas não cansam de servir as sagradas 3 refeições diárias, recusadas uma a uma, silenciosamente. É uma pobre alma, fruto de um destino turbulento, que parece ter encontrado a paz e segue seus dias em retiro, em clausura, meditando e sendo, para mim, o que há de mais certo nesse mundo.
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ceriema · 5 years
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devaneios da interessada
“Conversei bastante com o Daniel ontem. A gente vai se dar muito bem. Falta pouco para a gente se conhecer.” - Disse para a sua irmã, naquela manhã nublada, enquanto o natimorto se decompunha e a infecção a devorava de dentro para fora.
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ceriema · 5 years
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arranje um eu abençoado para mim
Não sei se já lhe contei esta história. Num passado cristão, as imagens me destruíram. Chame-as personificações, representações ou simulacros; chame-as gesso, resina ou cromo descascado; imagine-as figuras santas, corruptas ou imaculadas; mas comungue comigo apenas um algo. Olhos, olhos frios, fixos e fantásticos, azuis, castanhos, claros ou escuros; olhos benditos, olhos malditos, cuja atração desperta os mais profundos desejos obstinados de vida ou suicídio.
E me parece que durante muito vivi a bordo desse cruzeiro interminável, sem rumo e com algum ponto de partida em meio à névoa densa e cinzenta. Mas quando saltei ao mar, sem mais nem menos, encontrei areia e algas e de longe contemplei o espetáculo do bizarro em que permanecia até então.
Há uma família pobre que estaciona o carro ao lado do cruzeiro, próximo ao muro decadente do longo terreno do sanatório, e dos braços a mãe retira três objetos: uma estatueta de gesso sem cabeça, um quadro quebrado e um crucifixo partido ao meio, onde resta a sombra do Jesus que dali se soltou. A mulher faz o sinal da cruz, o marido impaciente, a criança chora. A porta do carro se fecha e aos pés do cruzeiro as figuras se encontram solitárias, desalmadas, talvez permaneçam ali por meses ou até a próxima chuva, com sorte, arrastá-las esgoto abaixo. A família, pelo contrário, encontrou a paz e a remissão, em um rito iconoclasta limpo e incondenável por qualquer santidade.
Desde que encontrei a terra, não encontro paz. Encontro, entretanto, pequenos alívios da minha aflição ao promover pequenas quebras, grandes ritos de remissão, com a esperança de seguir em frente limpo e incondenável.
O pároco interrompe a confissão e alarma a todos os moleques enfileirados sob as altas paredes do altar, cada um em frente ao seu padre, que nossa penitência está a caminho. A remissão será alcançada por vós, diz, quando os pés do Senhor Morto tocarem o chão. E mal termina sua anunciação, pois acaba por emitir um assovio rouco e estridente por alguns minutos, tempo suficiente para que os padres se levantem e formem um círculo de 4 pontos ao seu redor, murmurando qualquer coisa cada vez mais alto, parecendo competir com o estampido das Pedras que atingem os vitrais da catedral por fora.
O que é feito de mim, de nós? Um corpo de carne e gordura dotado casualmente de razão e jogado nesse mundo, como um cão sem osso ou um ator sem papel.
A igreja em ruínas no meio do mato reflete-me. Seu silêncio interior ressona com o meu vazio. Lá, encontro a paz por que tanto clamo. Batente a dentro, a agonia cessa e a aflição se dissipa pelas paredes, cria raízes no teto e desce, seca, vitrais abaixo. Ela me diz que não preciso de remissão, que ninguém precisa, pois a penitência é paga a cada passo dado. Caio por terra. O telhado se escora torto em três vigas e duas bênçãos de um deus que não está mais ali há tempos. O mugir de uma vaca impaciente no pasto parece reverberar ao contrário, aumentando e aumentando cada vez mais, terminando com um calafrio e um choque. Aos pés do altar posso vê-las de perto. Ocupando a mesa maciça de mármore verde estão figuras destruídas, de passado mais ou menos glorioso, ricas e pobres, decapitadas ou decepadas, mártires sujos, desbotados, intactos, úmidos, embolorados. Confundem-se, desfiguram-se uns aos outros. Hoje, seu próprio significado pertence ao passado imemorial. Ali, tudo é eterno. Nada morre, nada vive, apenas permanece. Ali, ninguém precisa de significados, porque nenhum outro os buscará. Nada precisa de remissão, porque não há pecados, nem céu e nem inferno. Sapos não precisam de pernas, pernas não precisam de chão, chão não precisa de terra, terra, mato. Meu corpo perduraria ali por toda a eternidade sem que um urubu se alimentasse dos meus olhos ou vespas, da minha carne. Apenas o vento ousaria tocá-lo, em um leve movimento pendular que talvez trouxesse um algo de dinamismo à iluminação daquele antro.
E mais uma vez me quebro, quebro o mundo e tudo o mais, apenas para não me pendurar-me pelo pescoço no limbo. É uma pena.
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ceriema · 5 years
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sem-título 2
Era como se eu conhecesse aquele lugar, como se houvesse passado por lá algumas décadas antes, quando a fuligem não cobria a grama. Mas não havia muito tempo para pensar, precisávamos chegar rápido e tudo aquilo era nada além de uma paisagem, um lapso, um momento. E como mais um poste à beira da estrada, avistei aquele prédio em ruínas que abrigava a metade de um avião gigantesco e, quando pude perceber o início de algum raciocínio, a tenebrosa figura anã rapidamente embarca pela janela no carro que nos ultrapassava e se atira ao asfalto, segundos depois, partindo-se em dois corpos indefinidos cuja estrutura óssea se mescla com seus músculos e pele e rolam para lados opostos. À frente, vejo apenas a grama verde e a cidade brilhante que se aproxima, distante.
***
A memória é apenas uma convenção. Era conveniente para mim, por exemplo, esquecer a desgraça causada por aquela criatura anos antes, a destruição, a fome e o sofrimento que culminaram na tentativa falida de um piloto atormentado em dar um fim indigno à situação, jogando o avião onde acreditava-se ser o lar daquele animal. Mas tudo veio à tona no momento em que ele se partiu e pude ver seus ossos e seu corpo mal formado, a ausência de olhos e a camiseta rasgada que o envolvia, provavelmente de uma das suas mais recentes vítimas. Fora esta desgraça que me deixava acordado, noites em claro, enquanto eu apalpava meus braços com medo de que não estariam mais presos ao meu corpo. Fora esta aberração que flagelou minha garganta, ferida pelos inumeráveis vômitos causados pela sua imagem. Fora este diabo que paralisou minhas pernas e me fez vulnerável a si. Fora esta desgraça que fez meus olhos sangrarem pelo choro ininterrupto. E fora este mesmo ser bipartido que trouxe tudo de volta, como se nunca houvesse arrastado sua pele grossa por esta terra. E hoje, é a sua alma que revive em mim o medo de tudo ao meu redor.
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ceriema · 5 years
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sem-título 1
Cuspindo filhotes hemípteros brancos transparentes conforme a tese de Bill Clinton ou a antítese de Arnold em meio à saliva seca ininterrupta o pulo o susto a insônia a volta a esse mundo triste fétido e solitário escariado pela rotina o Trim excessivo no cabelo o aroma de alvejante delicadamente despejado sob as axilas a ponta-pose de dentro da minha Mercedes [ eu passo primeiro, eu mereço ] o sapato macio da marca que eu mais gosto e a satisfação de ver-me concretizar em um poema da manhã, eu fiz por perecer.
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ceriema · 6 years
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kafka, franz :: a metamorfose
Por esta ser a primeira vez que vos dirijo neste inóspito antro escuro de incerteza, vejo que seja de bom tom uma breve apresentação [melhor do que aquela que o internauta deve ter encontrado uma postagem atrás].
Tudo o que se precisa saber sobre mim é que não existo. Sou tão simples como a vida [a irrefutável antítese da morte], portanto meu nascimento e meu óbito são eventos que se repetem, ad infinitum, no início e no fim de cada texto, respectivamente. Permita-me [o leitor] escrever minhas bobagens em paz e se, ao meio deste caminho, este vier a apresentar-lhes erros ou inverdades, não sinta-se em posição de perdoar.
Sem mais, A Metamorfose
Quem, no seu arbítrio, não se sente impelido a olhar para um acidente? Os corpos decepados, os metais retorcidos, a poça de sangue, a fumaça e a confusão. Se não cede, torna a cabeça para o lado em um movimento de alteridade, a respeitar o freak show prostrado a sua frente; ou talvez, de modo egocêntrico, pois não quer aquelas memórias para si.
Omitindo o quê e o porquê, Kafka esfrega nosso rosto contra uma cena degradante sem que tenhamos tempo para esquiva: fazer algo assim na primeira linha de um romance deveria ser um crime!
Mas é uma pena, e uma grande pena para os entusiastas do gore, dos contos de terror, d’A Mosca, que o inseto no qual se converte Gregor Samsa ao amanhecer de um dia nublado, pouca diferença faça para o desenrolar da trama. Gregor poderia ter se tornado uma fada ou uma maritaca, o enredo seria o mesmo!
Veja, a complexidade do fenômeno da metamorfose não é ele em si próprio e nem mesmo como é entendido [ou não] pelo protagonista, mas a sequela que ele causa na vida de Gregor em sua família. O inseto gigante, cheio de pernas incontroláveis, pode sobreviver: alimenta-se, diverte-se, locomove-se e até mesmo comunica-se com os seus [se houvessem outros como ele]. Abdicando da sua antiga realidade, Samsa poderia usufruir sem problemas da liberdade que lhe foi dada.
Mas Kafka, ao transformar todo o corpo do rapaz, esqueceu [propositadamente, espero] da sua consciência. Apesar de diversas manifestações de instinto que Gregor apresenta ao longo do enredo, ele nunca deixa de refletir. Com muita lucidez nos são apresentados seus desejos, opiniões e contradições. Gregor é, de fato, um homem do subsolo¹.
Gregor, a persona
Este ser humano, agora preso a um corpo estranho, sofre. Sofre a cada minuto. Sofre por não poder ir ao trabalho. Sofre por não poder mais ajudar sua família. Sofre por não poder enviar sua irmã ao Conservatório. Sofre por ver que esta família, com que tanto se preocupa, passa a enxergá-lo como um hóspede indesejável, uma coisa a se aturar ao fim de mais um dia de trabalho. E este sofrimento não faz diferença a mais ninguém além de Gregor.
Bem, num aspecto geral este é o principal sentimento que aflora em Samsa, a apatia. Parece que é concomitante o desenvolvimento da apatia tanto nele quanto em sua família, uma faca de dois gumes, um apontado para Gregor e outro para seu pai, sua mãe e sua irmã [não sei se posso ser mais específico depois deste ponto]. Ao meio desta contundência de duplas vias está um metal sólido, inoxidável e polido, e sobre ele falarei mais no próximo tópico.
Deparo-me, em específico, no que mais posso dizer a esta metamorfose do sentimento de Gregor, ao seguinte trecho:
Todas essas pessoas apareciam-lhe confundidas com outras estranhas há tanto tempo esquecidas; mas nenhuma podia prestar-lhe ajuda, nem a ele nem aos seus. Eram todas inexequíveis e sentia-se aliviado quando conseguia desfazer sua lembrança.
E ainda, mais a frente:
Sua indiferença por todos era muito maior do que quando outrora diversas vezes ao dia podia, deitado sobre a espádua, esfregar-se contra o tapete.
A Gregor, restou a morte humilhante e aprazível, enquanto aos seus restou a esperança de dignidade. Porque, é verdade, podemos viver com dignidade, não morrer com ela².
O trabalho dignifica o homem
A apatia de Gregor, a saber, foi motivada principalmente pelo modo como sua família começou a tratá-lo. Portanto, atenhamos a causa deste.
Gregor não pode trabalhar! Como único provedor da casa [e o fazia com gosto], seus familiares acostumaram-se a uma vida confortável. Não de luxos, é claro, mas da possibilidade de aterem-se aos seus afazeres domésticos sem maiores preocupações. A Metamorfose quebra esta rotina de um dia para outro, e deixando todos nus frente à incerteza do amanhã, coloca-os, obrigados, a trabalhar.
E depois de alguns meses carregando o fardo do trabalho, os três, cansados, exaustos, abrindo mão de seus sonhos a favor de um cotidiano que os prende e não os oferece saída, também transformam-se. Kafka identifica [ou apenas reitera] que o trabalho possui uma compensação interior a um corpo vulnerável: a dignidade. Se não é mais homem, não há como Gregor trabalhar: é indigno! Indigno de viver sustentado por 3 almas que transpiram diariamente em horário comercial.
Por fim, veja: quando a situação se inverte [ainda pensando nas duas pontas] a família de Gregor parece não ser capaz de perceber, ou reprime esta percepção, que durante os últimos anos eram eles os ocupantes do lado desmerecedor. E esta, somente esta, é a genialidade da obra. A única característica essencialmente humana: a ingratidão.
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¹ Referência à novela Notas do Subsolo, Fiódor Dostoievski (1864, Rússia).
² Citação do personagem House, da série de televisão House, M. D. (S01E01)
A quem possa interessar:
Vídeo kafkaesque, de TED-Ed (Fonte)
Música Roda Morta, álbum Cruel, de Sérgio Sampaio (Fonte)
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ceriema · 6 years
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ce.ri.e.ma
Ah, há quanto tempo!
Há quanto tempo remoí este ser subterrâneo, cego e mal resolvido, que com sua pele transparente finalmente rasga meu peito e trucida minhas esperanças?
Como, meu Deus, como pude ter coragem de voltar a este antro escuro de incerteza, onde a dúvida me vigia no final de qualquer uma das inúmeras bifurcações?
Que a Língua receba com a garganta trêmula este nome: CERIEMA!
Errado, uma afronta!
Oh, ave rasteira, alimenta-te do veneno desta cobra, esta que mal sabe o que está fazendo e que ousa proferir palavras de um conhecimento antipático, reles e superficial. Abençoe, Ceriema, esta jornada!
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