o dia em que dois mais dois quatro
a rua onde eu brincava foi sempre um edifício por acabar,
desenhado à mão, com traços disformes e riscos de tinta ao calhas.
de um lado, construíam-se os muros erguidos pelas vozes do incautos,
das bondades e do bem-dizer; da fazenda, do trabalho e da enxada na mão.
do outro, vinha-me à memória a léria do vigário e do passo esguio
que derrubava as primeiras vigas da manhã.
brincava num binómio entre o conforme e a pulhice
e é nele que habito hoje, antes de me ir deitar.
durante muitos anos julguei que o mundo eramos nós:
a mercearia, a casa dos meus tios, o recinto, os gatos e a cadela.
nos tempos em que o moderno não era a novidade,
a força das formigas era mais fascinante que a dos homens
e a chegada do outono era tão bem vista como a da primavera.
trago comigo este breve atraso de nascença,
que me permitia ver tudo quanto de bonito no mundo havia para ver.
se esta rua tiver um fim, é bom que eu que não o conheça:
ai (…) o que eu gosto de me perder pelos meandros (…),
pelas minudências que não me levam a futuro algum,
de me apaixonar pelo andar trôpego dos patos
e de me deixar levar pelo cheiro acolhedor a morte (e a broa acabada de sair do forno)
– que me lembra que estou vivo.
que o final da viagem não seja só um banco de madeira com vista para a lagoa,
mas alguém comigo nele – para voltar a esfolar os joelhos, de cair –
mas, se o final da viagem for só a contemplação (como um velho nas obras)
se for uma marquise com as janelas fechadas para a rua onde brinco;
volto a agarrar a enxada, que ainda há muita terra por lavrar.
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''Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. (...) Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos (...).'
Manoel
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pequenas notas cantadas do bloco branco
não são as palavras.
são os arredores.
é o espaço impossível
onde eu vou caminhando
que me faz ficar
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não é a solidão.
é o medo de ser esquecido.
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poesia-causalidade
é destes versos missão
expelir a solidão que não me cabe entre os ombros.
se no fundo de mim houver um pingo de amor,
que me venha agora
dizer que não sou capaz de te olhar para lá dos olhos
- que teimas em dizer que são de uma cor que não a deles,
por devaneio.
se a noite de hoje for para dedicar ao ridículo que é tremer
por nunca te ter conseguido ver por cima das pálpebras:
ela que venha
e que me mate outra vez.
amanhã fico melhor assim.
se é desta poesia missão
fazer-me pensar na beleza que te define
para lá do que as minhas mãos tocam
dedico-lhe esta noite
- e talvez as próximas ainda sejam precisas.
se o final da canção for depois do último verso que dedilho
vou-me aguentando por aqui
a ver se me olho para dentro
da burrice que foi nunca ter sabido olhar para lá do que vejo
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a minha avó bé
olha o vivo, o gado, as couves queimadas da geada
olha o lume, Isabel. as crianças, o pasto. o tacho!
traz vinho. o bagaço e a caminho vê da enxada
olha a laranjeira a partir de tanto carrego
vai ao pão. à lenha. dá de comer ao vivo
vê-me das botarras. hoje quero sossego
amanhã há caça. vai-me ver dos cães
olha o tacho, Isabel! todo a espirrar
vem lá seca. não pinga desde abril
lá diante, as peras todas no chão
aqui na mesa, o prato insosso
corre! tu vai-me ver do cão.
acode-me, vem para dentro
Isabel, Isabel, Isabel, Isab
as flores murcharam.
estou-te a chamar!
volta pra dentro
responde-me!
pra dentro
Isabel! Já!
o lume.
Isabel!
.
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reservei o dia às pequeninas coisas:
descascar esta laranja espevitada, abri-la aos gomos
e comê-los um a um, como era obra do meu pai;
dedicar uns minutos à ansiedade,
drogar-me de alvoroços inúteis
e sentir o pulsar a invadir carreiros que ainda não pisei,
não fosse eu esquecer-me da minha mãe;
sentar-me no jardim, com as mãos adormecidas no ventre
a admirar a grande nespereira, carregada de saúde
como fazia a minha avó depois da caminhada da tarde;
deixar-me impressionar todos os dias
pelo cheiro do rabo da gata, que já conhecia de cor,
como a minha cadela.
levo comigo todos estes sintomas:
- muito do que conheço em mim, é o que vejo neles -
navegam-me barcos carregados de desejos
e naufragam nas minhas costas toneladas de calor.
hoje é domingo, e tenho todo o tempo para descascar laranjas.
acho que é destes gomos que se faz o amor.
g
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o silêncio;
acredito que tenho sido um solitário incompetente,
que tem intercalado com exatidão o ruído de todos os beijos
com a voz firme que urge, do ressoar das montanhas,
a mandar-me de volta ao andar de cima
- como a minha avó me fazia, quando o tacho pousava na mesa -
gosto de pensar que fiz uso de todos os corpos para compor a solidão
que se vai arrastando pelo meu quarto, até à última estante.
em todo o esperma que larguei pela estrada,
há a angústia de pensar que seria o último ali, mas acima disso
há o precipício do universo e eu nele
(com as mãos em forma de concha, a beber directamente da fonte).
aí, surge a boiar a pequenez, encolhida entre os ossos macilentos,
em forma de feto, a olhar para a grandeza dos vales que me excede.
a casa adormeceu, finalmente, em silêncio e há
a sobrepor-se à frustração, o beliscar dos violinos;
orquestrados, talvez, pelo desvanecer do sol na serra.
- estas frases dedilhadas não são sobre mim, mas -
gosto de pensar que os grandes senhores não o são quando estão erectos, ofuscados pela confiança vivaz: são-no, quase sempre,
até onde conseguirem ser,
quando se reduzem ao vazio da montanha.
g
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do rés-do-chão ao andar de cima, há um corrimão esburacado
pelas vozes que ecoam entre as paredes do banal.
ouve-se a arrogância dos poetas,
a voz política que carrega a salvação,
ouve-se Deus, um qualquer, criado à pressa com um abaixo-assinado,
fazem-se ouvir os críticos de arte, que tudo sabem sobre a Prússia,
esfregam-nos as maleitas da eternidade na cara; vêm os economistas.
os ginásios.
inventamos todas as engenhosas que o rídiculo consegue atingir só para adiar a morte.
e no fim: somos todos feitos da mesma cinza.
a tudo isto, o silêncio.
.
g
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Sò me reconheço em beijos teus
Sabem sempre a hoje
Luís Severo
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Precisavas de razão p'ra enlouquecer
Deixei-te um erro sem perdão ficou-te pouco que fazer
E então a nossa solidão já não se voltará a ver
Tu louca desse coração, não medes o que vais dizer
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Porque paz
Eu matei
Nao há mais nada para esconder
Só a luz para nos salvar de cair
Porque amor
Eu julguei
Em guerra, sempre se perdeu
Peço à luz, por favor:
Faz um mundo existir
Esquece o que é só teu
Se não queres ser só teu também
Porque Deus
Eu menti
Que culpas entreguei ao céu?
Para fugir de aceitar este chão onde estou
Esquece o que é só teu
Se não queres ser só teu também
O céu aqui, Manel Cruz
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Entrei na casa dos meus avós duas ou três vezes, depois de ela ter morrido. Há umas semanas, quando o voltei a fazer, senti-a ali, debruçada sobre a escadaria fria que ligava a sala aos quartos. Sentava-se sempre lá, com um braço apoiado nos joelhos quase sempre ensanguentados, para deixar os sofás livres para os homens – certamente exaustos da sua vida de sacrifício. Ser mulher, naquele cenário frio de campo-caça-espingarda na mão, não só era seria frustrante, como a naturalidade com que se aceitava o enclausuramento era cruel. É aqui que me lembro do brilho dos olhos dela, quando lhe dizia que aquelas batatas fritas, cortadas de forma meticulosa, cobertas de sal, preparadas quase na noite anterior, eram as melhores do mundo. Ou quando lhe elogiava a força, maior do que a de todos os homens da casa, com que mexia a massa dos lagartos que me queria sempre oferecer – pela escassez com que os ouvia. Aos elogios. Em tudo o que fazia, estava o medo de errar perante o meu avô, que passava também a ser o medo de errar perante toda a gente. E vivia com esta felicidade encandeada pelo medo de errar a servir os outros – e não haverá reduto mais asfixiante de existência do que este: ansiar não ser crucificada pelo simples uso das suas bondades. Entristece-me ver, hoje, que a luta que se trava para que a minha avó não precise de se ajoelhar perante o mundo, como que a pedir clemência, se deixe, muitas vezes, banalizar por quem nunca a soube ver.
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A minha avó morreu há três anos. E não o digo com um pesar decadente, de quem sente a sua falta. É um facto. Nunca sentimos falta de um corpo que nos abandona, mas choramos a memória saudosa que nos deixa em herança. Sinto falta da minha avó quando a vejo nas pálpebras enrugadas do meu pai, por exemplo. E no olhar: revejo-a no rosto do meu pai, muitas vezes cabisbaixo – carregado de silêncios difíceis de decifrar, como os dela. Sinto falta da minha avó nas mãos brancas do meu avô, de um branco desvanecido, gastado pela violência dos andaimes e da inchada. Pressinto-a nas bondades da minha tia; e tenho-a muitas vezes ao meu lado, a afagar-me o cabelo, quando levo à boca um centeio com chouriço do mais rasca, a escorrer de gordura, como fazia lá em casa, à espera que o meu tio chegasse das obras.
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Como chove, Cacilda!
Como vem aí o Inverno, Cacilda!
Como tu estás, Cacilda!
Da janela da choça o verde é um prato
Que deve ser lavado, Cacilda!
E o boi, Cacilda!
E o ancinho, Cacilda!
E o arroz, a batata, o agrião, Cacilda!
Já cozeste?
Mário Cesariny (1959), Rural
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Entrei na casa dos meus avós duas ou três vezes, depois de ela ter morrido. Há umas semanas, quando o voltei a fazer, senti-a ali, debruçada sobre a escadaria fria que ligava a sala aos quartos. Sentava-se sempre lá, com um braço apoiado nos joelhos quase sempre ensanguentados, para deixar os sofás livres para os homens – certamente exaustos da sua vida de sacrifício. Ser mulher, naquele cenário frio de campo-caça-espingarda na mão, não só era seria frustrante, como a naturalidade com que se aceitava o enclausuramento era cruel. É aqui que me lembro do brilho dos olhos dela, quando lhe dizia que aquelas batatas fritas, cortadas de forma meticulosa, cobertas de sal, preparadas quase na noite anterior, eram as melhores do mundo. Ou quando lhe elogiava a força, maior do que a de todos os homens da casa, com que mexia a massa dos lagartos que me queria sempre oferecer – pela escassez com que os ouvia. Aos elogios. Em tudo o que fazia, estava o medo de errar perante o meu avô, que passava também a ser o medo de errar perante toda a gente. E vivia com esta felicidade encandeada pelo medo de errar a servir os outros – e não haverá reduto mais asfixiante de existência do que este: ansiar não ser crucificada pelo simples uso das suas bondades. Entristece-me ver, hoje, que a luta que se trava para que a minha avó não precise de se ajoelhar perante o mundo, como que a pedir clemência, se deixe, muitas vezes, banalizar por quem nunca a soube ver.
A luta é de todos. Que se travem as batalhas certas.
(via asaudad)
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Como chove, Cacilda!
Como vem aí o Inverno, Cacilda!
Como tu estás, Cacilda!
Da janela da choça o verde é um prato
Que deve ser lavado, Cacilda!
E o boi, Cacilda!
E o ancinho, Cacilda!
E o arroz, a batata, o agrião, Cacilda!
Já cozeste?
Mário Cesariny (1959), Rural in Nobilíssima Visão
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A minha avó morreu há três anos. E não o digo com um pesar decadente, de quem sente a sua falta. Nunca sentimos falta de um corpo que nos abandona, mas da memória saudosa que nos deixa em herança. Sinto falta da minha avó quando a vejo nas pálpebras enrugadas do meu pai, por exemplo. E no olhar: revejo-a no rosto do meu pai, muitas vezes cabisbaixo – carregado de silêncios difíceis de decifrar, tal qual os dela. Entrei na casa dos meus avós duas ou três vezes, depois de ela ter morrido. Há umas semanas, quando o voltei a fazer, senti-a ali, debruçada sobre a escadaria fria que ligava a sala aos quartos. Sentava-se sempre lá, com um braço apoiado nos joelhos quase sempre ensanguentados, para deixar os sofás livres para os homens – certamente exaustos da sua vida de sacrifício. Ser mulher, naquele cenário frio de campo-caça-espingarda na mão, não só era seria frustrante, como a naturalidade com que se aceitava o enclausuramento era cruel. É aqui que me lembro do brilho dos olhos dela, quando lhe dizia que aquelas batatas fritas, cortadas de forma meticulosa, cobertas de sal, preparadas quase na noite anterior, eram as melhores do mundo. Ou quando lhe elogiava a força com que mexia a massa dos lagartos que me fazia – pela escassez com que os ouvia. Aos elogios. Em tudo o que fazia, estava o medo de errar perante o meu avô, que passava também a ser o medo de errar perante toda a gente. E vivia com esta felicidade encandeada pelo medo de errar a servir os outros – e não haverá reduto mais asfixiante de existência do que este: ansiar não ser crucificada pela sua bondade.
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A nudez
Só a nudez
Para quê bolsos
onde guardar
o amor
e o cotão
Rui Caeiro
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